Nós voltamos repetidamente a contos de fada não em busca de novidades, mas de narrativas que permanecem as mesmas ao longo de séculos e, ainda assim, fazem sentido e falam a uma parte importante de nós mesmos.
Não é necessariamente uma questão de fidelidade à história, mas de repetição de arquétipos, de trazer à tona uma mensagem, uma “moral da história” do conto de fadas. Surreal e complexo, A Bela e a Fera de Jean Cocteau contava a mesma história que a versão mais simples e mais açucarada da Disney.
Christophe Gans está tão longe de Cocteau quanto poderia estar: o diretor vem de uma carreira de filmes de terror ou ação, como a adaptação cinematográfica de Silent Hill. A Bela e a Fera é seu primeiro filme fora de hollywood e com toques autorais e lhe serve bem a experiência com alto orçamento e apuro visual.
O cuidado e a complexidade visual do filme de Gans lembra os primeiros filmes de Jean-Pierre Jeunet, como Delicatessen e Ladrão de Sonhos: estranho, único e barroco. O excesso de informação cria uma atmosfera pesada, como igrejas barrocas hiper-elaboradas, que condiz perfeitamente com a narrativa do século 18. Na adaptação de um conto de fadas, ser capaz de evocar a atmosfera de uma terra muito, muito distante em um tempo indefinido é, de forma quase paradoxal, essencial para que ele se torne verdadeiro e verossímil. É a completa irrealidade do conto de fadas que nos lembra que se trata de um mito, ou seja, uma história sobre o que há de real nos seres humanos.
A mensagem de A Bela e a Fera é clássica e conhecida: é preciso ir além das aparências, a beleza que importa é a interior. Gans não abandona essa mensagem, mas adiciona uma outra: é preciso tomar cuidado com as ambições. É ao desejar demais que o príncipe encontra seu destino de ser transformado em monstro. Gans é eficiente ao costurar esse tema por todo o filme; o pai de bela, suas irmãs e irmãos, todos desejam demais e isso os leva a perder-se de alguma forma, apenas ela, ao se contentar com pouco, tem o poder de salvar alguém.
O roteiro do filme apresenta algumas modificações e detalhes em relação ao conto original e as adaptações mais conhecidas, mas mantém a essência da narrativa. A história é bem conduzida e capaz de manter o espectador envolvido por mais que ela seja uma velha conhecida. O único problema está no tratamento da relação entre os dois personagens centrais: não há qualquer aproximação, mudança ou evento que justifique a mudança de Bela para com seu captor. É de repente, sem mais nem menos, sem nem mesmo conversar com ele, que ela descobre que o ama. Soa artificial e gratuito, o filme ganharia se algum tempo fosse gasto aproximando os protagonistas.
Além disso, o longa sofre com atuações ruins. Exceto por Lea Seydoux, competente e encantadora como sempre, o resto do elenco parece afetado e medíocre. Vincent Cassel é charmoso e sedutor, mas pouco versátil, e príncipe encantado não está no rol de papeis em que ele é convincente. As atuações ruins, junto da artificialidade de vários diálogos, quebram o filme que, não fosse por isso, fluiria de forma adorável.
Dentro da atual onda de revisões de contos de fadas, A Bela e a Fera traz um frescor por se ater a história original. Existe algo de poderoso e ancestral nessas histórias que as adaptações com frequência perdem. Voltamos cem mil vezes a Bela Adormecida, Branca de Neve e Cinderela não para ouvir um outro lado da história, mas para reencontrar uma história sabida de cor. Gans honra isso e cria um universo fantástico pensado nos mínimos detalhes para dar vida a sua fábula, o problema é que seus atores não sustentam os personagens. Os personagens de histórias como essa são planos, devem ser, estão ali como representantes de características humanas, mas isso não quer dizer que devam ser artificiais ou que o trabalho de atuação envolvido em lhes dar vida não seja complexo.
No final, A Bela e a Fera é um filme visualmente impressionante e encantador. Não é perfeito e dificilmente será memorável, mas parece um trampolim na carreira de Christophe Gans: um filme autoral em que sua estética ganha corpo pode levá-lo a caminhos como o de Guillermo Del Toro e o próprio Jeunet. Ao mesmo tempo, confirma Lea Seydoux como a estrela que vem se tornando e honra, mais do que qualquer outra adaptação, a permanência das narrativas tradicionais.