O estilista franco-argelino Yves Saint Laurent (1936-2008) foi um homem de sua época, um dos maiores artistas da alta costura e uma das personagens que mais despertaram interesse no último século. Recentemente dois filmes biográficos tentaram dar conta de sua dramática vida, o documental L’amour Fou (de Pierre Thoretton, 2010), e o drama Yves Saint Laurent (de Jalil Lespert, 2014). Apesar da separação temporal e das diferentes propostas, ambos apresentam intenções muito parecidas e por isso estão reunidos aqui, a fim de integrar um panorama mais amplo sobre essa persona tão enigmática.
O fio condutor das duas histórias é um nome indissociável quando se pensa em Yves e sua obra: Pierre Bergé, que por quase cinquenta anos não apenas cuidou do trabalho do estilista, ajudando-o a fundar sua própria maison, a YSL, em 1962, como foi seu companheiro na vida pessoal, enfrentando os altos e baixos de sua personalidade maníaco-depressiva, que somou internações psiquiátricas, abuso de drogas e alcoolismo. Se o ditado (um tanto quanto machista) diz que “ao lado de um grande homem, há sempre uma grande mulher”, adaptemo-lo, sem falso moralismo, considerando que ao lado desse grande homem, Yves, havia outro grande homem, Pierre.
O documentário L’amour Fou serve tanto à rememória quanto à despedida. Nostálgico a certa medida, acompanha Bergé repassar (com uma sisudez que só os franceses conseguem ter) os momentos mais importantes da carreira do companheiro, como a ascensão, aos 21 anos, à direção artística da maison Dior, quando da morte de Christian Dior, em 1957. Somado a isso, Pierre inventaria a expressiva coleção de arte que o casal montou ao longo de mais de duas décadas. Em meio aos quadros, esculturas e outras peças raras (que Yves chamava de “filhos”), despede-se do passado de glamour e turbulência, às vésperas de fazer o histórico leilão das peças pela Christies, onde arrecadou centenas de milhões de euros (em tempos pré-crise).
E é justamente desse leilão que parte o drama de Jalil Lespert. Também narrado por Pierre (interpretado magnificamente por Guillaume Gallienne, do qual recentemente tratamos em Eu, Mamãe e os Meninos), já idoso, que parece contar ao espectro do parceiro os momentos que passaram juntos. O corte temporal é confuso, vai de 1957 até a aposentadoria do estilista, em 1976, e depois pula para os últimos anos do casal, isolados no interior. Contudo, o que fica é a habilidade de recriação, com esmero e elegância da direção artística, de episódios narrados justamente no documentário L’amour Fou. Assim, não seria de todo arriscado supor que a principal fonte do longa-metragem de ficção foi o documentário, já que este primeiro mergulha exatamente nos pontos do segundo que urgiam mais aproximação.
Assim, a biografia Yves Saint Laurent nos sacia o impulso de “quero mais”, recriando as loucas festas, os episódios de traição, as brigas intensas, os vícios, as lágrimas, os beijos e até o ovo poché dos cafés de Pierre. Também estão no drama figuras que, vai saber por qual motivo, não foram exploradas no doc., como Karl Lagerfeld, da Chanel, com quem Yves tivera uma amizade turbulenta, de tensões e inveja, e até Andy Warhol.
Há muito espaço para moda também, não se engane. A ficção recria não só as histórias, como as coleções com a finesse digna de seu protagonista, um artista revolucionário da vestimenta feminina. Estão lá seus Modrians, seus chalés, suas cores, assim como as peças do primeiro (Dior, 1958) e do último desfile (YSL, 1975). Enquanto ainda um jovem tímido que sonhava em se casar com sua modelo predileta, Victoire Doutrelleau (Charlotte Le Bon), muitas cenas de Yves na primeira metade do longa se passam dentro de seu estúdio, de jaleco branco, em pleno processo de criação.
Já em L’amour Fou, embora o destaque seja a coleção de arte e o relato de Bergé (fazendo de Yves, às vezes, um personagem secundário, mesmo que tema de todas as conversas), em alguns momentos passeamos pela residência monumental construída por ambos, vendo os originais de algumas importantes criações materiais desse gênio, tendo ao fundo a voz de Pierre explicando o contexto da criação, tal qual um guia turístico de um museu europeu.
O “golfinho da Dior”, apelido dado pela imprensa logo que assumiu a Dior, está muito bem representado na cinebiografia: Pierre Niney, outro ator saído da companhia teatral Le Comédie Française, incorpora sua persona nas feições e trejeitos, tom de voz e instabilidade, construindo um retrato ideal. Seu par com Guillaume, como Pierre, tem a sincronia necessária para uma história de amor e dor intensas.
Assistindo aos dois filmes, é possível fazer uma eficiente aproximação dessa figura verdadeiramente fascinante, que por mais que às vezes nos pareça apenas mais um jovem europeu alienado, com muito dinheiro e pouco juízo, cuja fama precoce foi seu triunfo e sua sina, de fato revela-se muito mais multifacetado, com angústias puramente humanas, como qualquer plebeu.
Acima disso, ambas têm o valor de trazer Pierre, o “man behind the curtain”, para diante dos holofotes, ouvindo sua versão da história ou vendo a história através de seus olhos. Ambos também conseguem naturalizar a homossexualidade sem grandes problemas, ou melhor, mostram que aquele relacionamento esteve sujeito a todos os problemas de qualquer relacionamento hétero; mas, sobretudo, ambos têm delicadeza necessária, à parte de seus problemas pontuais e não muito graves, para bem tratar esse amour fou, amor louco, bobo, grande, difícil e que, sem dúvidas, mudou para sempre os rumos da moda.