Os atrasados do ENEM estão desfechando tiros no peito, diria Drummond, se pudesse acompanhar a saga anual do Exame Nacional do Ensino Médio. Como não há mais poetas, resta-nos observar o drama dos vestibulandos retardatários de maneira rasteira: um pouco com o coração apertado, um pouco com a malícia do humor.
Não é por menos – com o mundo conspirando contra os estudantes, surgem algumas histórias de causar inveja ao cinema. Só em dia de ENEM para alguém capotar o carro e achar que o melhor a se fazer é seguir em frente, confiante nos próprios calcanhares, para não perder a hora da prova. Como a máscara da comédia está sempre ao lado da trágica, a gente acha graça naqueles que ficaram de fora por motivos bestas – tipo o rapaz que, já dentro do local, se deu conta que tinha esquecido a água, saiu para comprar e, ao retornar, deu com os portões fechados.
Mas são das reações descabidas que a mídia gosta mais. Povo se debatendo no chão, conclamando santos e forças espirituais diversas, jurando os seguranças de morte. O que ninguém desconfia é que no meio de tanto lamento necrológico há uma moça que está se torcendo de gozo. Há uns anos, atrasou-se para a prova e foi fotografada de todos os ângulos.
Ela nunca tinha se visto chorando antes. Achou-se linda. A experiência foi tão reveladora que, se não estivesse extasiada, poderia ter sentido uma nova dobra se formar em seu cérebro, poderia ter percebido a alma se expandir um tiquinho. Viu abrir-se diante de si não apenas uma janela, mas um palco iluminado e rodeado por uma vasta plateia que, deslumbrada com a performance da jovem, aplaudia o espetáculo de pé e aos prantos, com o pedido de bis engasgado na garganta. Decidiu abandonar os estudos e virar atriz.
Desde então, ela chega atrasada para a prova todo ano. Para ganhar no drama, calcula o momento exato em que as portas estão se fechando. Faz pose e chora profusamente, agarrando as barras de ferro e implorando que a deixem entrar. Adora a sensação de estar rodeada de câmeras, e quando sente na pele o primeiro flash, apela para os jornalistas, pedindo ajuda. Mas ela está sozinha no mundo e só resta agarrar os cabelos com as mãos trêmulas, enquanto responde entrevistas com declarações simplórias, frases soltas em um longo momento de luto, clamando que entendam a gravidade da situação.
Depois, corre para casa e chama a mãe para procurar as fotos na internet, que a beija cheia de orgulho: “Você saiu linda, filhinha”. Imprime e guarda as imagens em uma pastinha para depois estudar sua atuação, pensando quais técnicas poderá usar ano que vem. Ela é um astro de órbita lenta, uma diva anônima dos lanternas, uma celebridade da nossa incessante demanda por desgraça.
Desiludidos mas fotografados, diria Drummond, sobre os atrasados do ENEM.