Xavier Dolan ganhou notoriedade quando, em 2009, com apenas 20 anos, seu longa de estreia foi escolhido para representar o Canadá no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Eu Matei a Minha Mãe era um filme semiautobiográfico que trazia o próprio Dolan como protagonista e retratava a conturbada relação entre uma mãe e seu filho homossexual.

Falho em diversos aspectos, o longa já trazia elementos que se tornariam marcantes na filmografia do jovem, mas prolífico cineasta: a autobiografia e a autoexposição, o lugar incômodo entre documentário e ficção e a forte influência da Nouvelle Vague e diretores como Luis Buñuel.

O cinema de Dolan, ainda que inconsciente disso no início, é um cinema da forma, um cinema que questiona e manipula a linguagem para expressar algo que seria, em última instância, banal. A ele interessam as histórias cotidianas, os personagens comuns e o extraordinário encontrado ali pelo rebuscamento da forma cinematográfica.

Mommy anuncia seu final já na epígrafe. Antes do filme começar, um texto informa que, em uma realidade alternativa, uma nova emenda na lei canadense permite que pais de filhos com problemas comportamentais, em caso de desespero econômico, abandonem-os em qualquer hospital público. Dolan é controlador demais, exato demais, para que essa informação seja gratuita, para que o dilema possa se resolver sem que ela seja usada.

A trama tem início quando Diane é chamada ao reformatório onde está seu filho Steve para levá-lo para casa após um incêndio na cafeteria. Steve é violento, instável, mas obcecado pela mãe. O filme acerta ao não esclarecer quase nada; desde o transtorno de Steve até sua sexualidade, tudo no garoto é nebuloso, insinuado, o personagem é tão incompreensível para o público quanto para a mãe.

O filme começa em um enquadramento 1×1 que permite que pouco mais que o torso de um ator esteja em quadro. É angustiante e claustrofóbico até que, eventualmente, o espectador se acostuma. Como os personagens, quem assiste reduz seu universo e vai, aos poucos, sublimando o incômodo, ignorando-o até que pareça ser perfeitamente aceitável.

É nesse momento que a história insere ar e, em um momento conduzido com maestria, Steve afasta as laterais da tela para exibir o widescreen. É preciso uma abordagem e um entendimento do cinema específico para entregar assim a estrutura do filme, para relembrar o espectador de que aquilo é um filme e Dolan, nesse único plano, assinala-se dentro das grandes correntes da história do cinema.

O gesto não soa falso, não soa roubado de um filme de Godard. Soa autêntico. Soa como parte do universo e da arte de Xavier Dolan. Com Mommy, e com apenas 25 anos de idade, o canadense alcança sua maturidade. O primeiro sinal disso está na sua ausência como ator.

Em todos os seus filmes até aqui, Dolan juntou a carga autobiográfica do roteiro com sua própria presença como protagonista. É uma escolha forte e com benefícios: a distância entre obra e autor diminui e a atuação ganha todas as dimensões que apenas o criador pode conhecer. Mas em Mommy o distanciamento é uma saída melhor, a história é forte e obscura demais para que o diretor pudesse se misturar a ela e sair ileso. Em vez disso, temos a sublime atuação de Antoine-Olivier Pilon, violento, perigoso e infantil na medida certa. Pilon consegue colocar a relação entre Steve e a mãe em um local extremamente incômodo e ambíguo entre desejo sexual, ódio e adoração.

A boa direção de atores e a excelente escolha de planos provam que Dolan não é apenas um bom diretor, é um grande nome, um notável artista e, mais do que tudo, um manipulador quase cruel. Ele conta o fim de seu filme já na epígrafe, ainda assim, tortura o espectador até o último instante com a possibilidade de uma redenção. Com o plano que se abre. Com cenas de risadas e brincadeiras na praia.

Mas acreditar nisso é inocência, como Diane sabe e como quem assiste o filme deveria saber.

Em Esse Obscuro Objeto do Desejo, Buñuel troca a atriz principal no meio do filme. Diversas pesquisas posteriores mostraram que poucas pessoas foram capazes de detectar a mudança, ainda que as mulheres fossem muito diferentes fisicamente. A ideia, segundo o cineasta, era provar o poder de imersão do cinema, a alienação que o meio poderia causar. Em determinado momento de Mommy, nota-se que o enquadramento voltou ao claustrofóbico 1×1, mas a mudança passou desapercebida. A impossibilidade de saída se coloca como uma ferrugem, devagar, corrosiva, na forma da ação judicial movida pelo garoto ferido no incêndio da cafeteria.

Paralela à dinâmica entre mãe e filho, corre a amizade entre Diane e Kyla, a vizinha da frente. Kyla é gaga, está em um “ano sabático” claramente identificável como uma licença psiquiátrica. Em sua casa há fotos de duas crianças, mas apenas uma aparece no filme. Sua história nunca é contada, mas ela permanece como peso, como alternativa, como fantasma da perda de um filho.

Kyla e Diane se parecem fisicamente e é com a vizinha que Steve mais se parece com um menino. Na força de Kyla some seu subtom sexual, e ele se torna nada mais que o garoto ingênuo e problemático que é. Ela é de certa forma o que Diane poderia ser, mas não é. A mãe que poderia ser mais adulta e mais controlada do que o filho e que poderia lhe dar uma alternativa. Diane grita, sem a força do filho, é quase tão descontrolada tanto, tão desconectada de si mesma quanto.

Assistir a Mommy é como assistir uma tragédia anunciada. Como se um noticiário de tv mantivesse uma câmera fixa em uma avalanche e você pudesse assistir, lentamente e em detalhes, a tudo que vai sendo destruído no caminho e a todos os mortos deixados. Não há salvação, não há saída. Mas por um segundo todos se deixam fazer acreditar. E a queda depois do respiro é muito pior.

É um filme cruel, magistralmente bem feito. Controlado até as raias do possível