Está na hora de começarmos a nos perguntar se o Saramago é um autor que funciona no cinema. À primeira vista, suas histórias sugerem um potencial para filmes conceitualmente bem originais, mas até então não tivemos um diretor que conseguisse fazer muito com isso. Cegueira tentou tratar a premissa fundamentalmente absurda com naturalismo, o que só deixou evidente o quanto os acontecimentos do livro não refletem de forma alguma o que aconteceria na vida real caso milhões de pessoas ficassem de repente cegas.

Parece heresia procurar defeitos nas obras de um dos autores mais aclamados da língua portuguesa, mas o fato é que, desconsiderando a inventividade da prosa, as narrativas do Saramago não funcionam muito além do espectro alegórico. Isso funciona em literatura, mas adaptações cinematográficas provavelmente precisavam de alguém com a coragem de um Kubrick, alguém que partisse da premissa básica para criar algo completamente diferente.

O Homem Duplicado até tenta ser isso, mas não vai tão longe quanto deveria. O filme não é uma adaptação tão fiel quanto a de Meirelles; o diretor Denis Villeneuve e o roteirista Javier Gullón tomam mais liberdades com o livro, mas eles não parecem saber para onde levar a história. O resultado é um filme vago, com diversas possíveis interpretações e elementos simbólicos que podem significar qualquer coisa, ou nada.

Passado numa Toronto constantemente nublada, O Homem Duplicado acompanha um professor de História (Adam) que descobre a existência de um ator (Anthony) fisicamente idêntico a ele em aparentemente todos os aspectos. O filme estrela Jake Gyllenhaal (com quem o diretor trabalhou no recente Os Suspeitos) nos dois papéis principais. Jake não é o ator mais complexo do mundo, mas ele dá o melhor de si; o filme falha em elementos tão fundamentais que as atuações acabam sendo irrelevantes.

O primeiro problema é o fato de que os acontecimentos simplesmente não são muito interessantes: Adam fica obcecado com Anthony e entra em contato, com o objetivo de marcar um encontro. Anthony a priori recusa, mas eventualmente concorda. Os dois homens se encontram, coisas acontecem e, quando a trama finalmente parece começar a levar a algum lugar, o filme acaba. Alguns detalhes parecem ter um significado simbólico, como as aranhas de CGI que vemos em certos pontos. A presença de Mirtilos também deve ser importante, já que Anthony gosta da fruta, mas Adam não. Ou seria o contrário?

Essa dúvida é proposital. Um grande esforço é feito para gerar ambiguidade sobre a situação. Estamos realmente lidando com sósias, ou estamos vendo o mesmo homem vivendo duas vidas? Temas psicossexuais são estabelecidos desde a primeira cena, onde Anthony (ou seria Adam?) assiste a uma performance erótica em um clube underground. As reações da namorada de Adam (Mélanie Laurent) e da esposa de Anthony (Sarah Gadon) às atitudes de seus respectivos companheiros sugerem que algo está errado com tudo isso; o filme claramente está mostrando uma realidade colorida pelo subconsciente do(s) protagonista(s).

Uma possível interpretação é que se trata de uma história sobre adultério, sobre um homem levado a criar uma nova persona para racionalizar a vida dupla que leva. Uma das cenas que mais parece corroborar essa leitura envolve Adam (ou seria Anthony?) visitando sua mãe (Isabela Rosselini, desperdiçada em um papel ingrato). Mas há mais coisas a se considerar. Como no livro, o fato de que “a história se repete” é frisado com bastante ênfase nas aulas de História onde Adam fala sobre regimes totalitários. Estaríamos vendo a ilustração de um ciclo inescapável (tagline: “You can’t escape yourself”) não só na vida de um homem, mas de todo o gênero masculino?

Eu provavelmente estou fazendo o filme parecer mais interessante do que é. Nada disso é ruim em teoria, mas há um abismo entre intenção e execução aqui. Não tenho problemas com filmes ambíguos que deixam mistérios sem solução. Um dos melhores dos últimos anos, Sob a Pele, também deixa um monte de coisas sem explicação, mas a confiança do Jonathan Glazer na direção faz toda a diferença; ali, uma mudança sutil na trilha sonora reconfigura toda a cena sem que o menor movimento de câmera seja necessário. Também se trata de uma adaptação, mas o livro é utilizado meramente como ponto de partida para criar uma experiência sensorial e irrevogavelmente cinematográfica.

Villeneuve tenta criar um clima de suspense em O Homem Duplicado, mas suspense precisa de perigo, ou no mínimo da ideia de perigo. Se você não faz ideia de qual é a suposta ameaça, se você nem sequer entende o que está em jogo, qual é o ponto de inserir uma trilha sonora sinistra no meio da cena, como se algo estivesse acontecendo? O resultado final não é sequer visualmente interessante. A fotografia, que eu decidi apelidar de de “50 tons de amarelo,” é possivelmente uma homenagem a A Dupla Vida de Véronique, mas, infelizmente, o Villeneuve não é Kieslowski.

 

Avaliação: ** de *****