Anteriormente em Verão Infinito…
Verão Infinito #0
Verão Infinito #1
Verão Infinito #2
Verão Infinito #3
Nós precisamos falar sobre Kafka. Kafka, Franz Kafka, aquele que viveu em Praga e era ao mesmo tempo alemão, tcheco, judeu e nenhuma dessas coisas. Aquele que certa manhã acordou de sonhos intranquilos e descobriu que havia se transformado em um inseto monstruoso. Não, pera, esse é um dos seus personagens. Ou não?
Toda a literatura de Kafka é construída em espelhamentos entre ele, autor, você, leitor, e seus personagens. Conforme ele avança na sua carreira e em seus temas, os personagens passam a cada ver mais não serem ninguém e serem o próprio Franz Kafka: Gregor Samsa se torna Joseph K. que se torna K.
Que se torna, talvez, quem sabe, Hal Incandenza.
“Isadora, nós finalmente chegamos a um mísero fiapo de trama e você quer jogar tudo pro alto e vir fazer paralelos absurdos com um senhor escritor do início do século passado em vez de comentar QUALQUER COISA sobre o que aconteceu?”
Pois é exatamente isso que eu quero.
Entenda esse texto como uma nota de rodapé. É a quarta semana, um mês se passou e antes de mergulhar nos nós, desdobramentos e altos e baixos da narrativa, vale a pena um balanço do que parecem ser os grandes temas de Graça Infinita até aqui. Vejam, eu sou o departamento de cinema deste site, o tema por trás da técnica é o que eu vivo para desvendar. Então vamos lá:
No primeiro texto deste Verão, a Simone disse que Graça Infinita é um livro sobre vícios. Eu diria que ele é um livro sobre obsessões. Qual a diferença entre obsessão e vício? Alguns diriam o fato de você ainda não ter vendido a tv de casa, ou apenas uma questão de estilo literário, eu diria: nada. A paranoia é, de certa forma, o oposto da depressão: se em uma nada faz sentido, na outra absolutamente tudo faz sentido e Graça Infinita, seus personagens e seu autor são ao mesmo tempo deprimidos e paranoicos. Tudo faz sentido, portanto nada faz sentido. Nada faz sentido, exceto um único, micro, pequenino recorte do mundo: a obsessão.
De uma forma inteligentíssima e totalmente cruel, DFW enche seu romance de referências, de possíveis obsessões de seus leitores. Tem gente que vê Hamlet, gente que vê Ulysses. Eu vejo Kafka.
Eu vejo Kafka em cada linha do livro desde que Hal nos foi apresentado, fazendo uma entrevista para entrar na universidade. “Animal” é um termo jogado na cara dele. “Grunhido” é como chamam o que sai de sua boca quando ele tenta falar. Hal é Gregor Samsa ao acordar de sonhos intranquilos.
Mas os sinais de animalização e perda da humanidade não param por aí. A Mães afirma que Hal come “selvagemente”, as passagens em que estamos sob seu ponto de vista são repletas de referencias corporais, com uma minúcia na sensorialidade que só um inseto seria capaz. E povoadas por um senso inescapável de alienação, outro tema caro a nosso Franz Kafka.
Alienar-se é estar do lado de fora, separado, destacado. Alheio ao que devia se pertencer. Exatamente como Hal, e diversos dos outros meninos, se sentem na ATE. Há uma passagem brilhante em que Hal descreve o gênio de um sistema que os faz competir entre si, mas odiar ainda mais a instituição em si, criando uma fraternidade artificial. Ele se sente desconfortável e quase enojado com a manipulação burocrática que é tão capaz de dominá-lo.
E estamos de volta aos temas de Kafka.
A sensação de identidade roubada pela grande máquina do sistema é também o que move os separatistas do Québec. A ONAN é uma máquina de triturar identidades como nunca antes se viu nesse mundo, mas a sensação de estar dentro e fora não é nova na história do mundo: em todo grande império do século XIX nós encontraremos um relato de conflito da identidade nacional: seria eu húngaro ou austro-húngaro? Judeu, alemão, tcheco ou nada disso? Canadense, americano, onanita?
Até o subsídio dos anos, eu nunca havia encontrado um autor tão desconfortável com a modernidade quanto Kafka, mas DFW supera-o ao digeri-lo (“talvez seja alguma coisa que eu comi”) e ele leva a um extremo completamente extremo o jogo de espelhos: ele se coloca e se pulveriza em um romance de mais de mil páginas, repleto de personagens, tramas confusas e infinitas notas de rodapé.
DFW é o menino prodígio Hal Incandeza. A deprimida Kate Gompert. O gênio James O. Incandeza. O defeituoso Mário. Ele é o ser humano que deseja tanto ser entretido que quer ser entretido até a morte e ao mesmo tempo escreve um livro que é uma espécie de antítese do entretenimento em sua extrema dificuldade formal.
Graça Infinita é um jogo de espelhos em que tudo reflete em tudo, tudo conta a mesma história e nenhum detalhe é irrelevante. É uma espécie de épico da crítica à cultura pós-moderna, a Odisseia que Adorno estava esperando (DFW, não por acaso, tem um ensaio excelente sobre teoria crítica e cultura norte-americana chamado “The Review of Contemporary Fiction”).
E se tudo é um jogo de espelhos, eu irritantemente abandono o comentário sobre a trama em uma tentativa de imitar a dilatação e a infinita (há!) expansão da história promovida pelo autor. E ao mesmo tempo, agora que temos uma narrativa, perguntar: a narrativa realmente importa?
Boa leitura.
Uau, que análise.
Em nenhum momento eu pensei em Kafka. Já vi muito de Hamlet. Vi muito de Borges, o jogo Eskhaton é muito borgiano. E em alguns momentos tenho visto bastante de Cortázar. Porém agora, vc embaralhou tudo, realmente vejo muito mais Kafka no texto. Comentei na ultima semana, ou escrevi em algum lugar, que estou em relacionamento de amor e ódio com o livro. Na sua pergunta final deste texto, eu vejo que para o ódio a narrativa não importa. E falo isso, pq achei um “porre” ler esse capítulo do Eskhaton. Em relação aos momentos de amor, o trecho sobre Mario esta semana é a definição para esta palavra. A conversa dele com Hal na nota 110, também. Uma coisa que tinha atentado é o quanto Hal pode ser DFW, e vc complementou agora, ele pode ser os outros, também. Mas Hal é o que chega mais perto. No fim, talvez, não saberemos se fomos entretidos ou não, mas creio que toda essa provocação a cerca do entretenimento tem resposta ao longo de várias passagens do livro. No mais, ao findar, estaremos obsessivos.
é isso, sigamos.
Abs
Raphael
Não comentei nas últimas semanas que no fim do ano li direto, ultrapassei longe a leitura daqui, mas agora vocês tão me alcançando rs.
O comentário aqui em cima falou que achou o Eskhaton um saco, eu achei simplesmente sensacional! Foi a única vez, até agora – to na página 500 e alguma coisa – que gargalhei alto. Ele tem uma complexidade de inicio que depois você só percebe que ‘dane-se, ela não importa’ e a narrativa flui tão bem, culminando naquele final estrondoso, coisa lindíssima de se ler. Me lembrou muito o seriado Community, mas o DFW elabora o capítulo tão pacientemente que nem se compara com as coisas que o Community faz em seus 20 minutos semanais.
E eu concordo muito com o texto, desde que comecei o livro eu só via DFW falando sobre si mesmo. Um cara ansioso, depressivo, observador, preocupado em estar viciado em maconha, obsessivo, minimalista, apreciador de tênis e Marlon Brando, entendedor de ângulos côncavos, de AAs e das diversas ‘”jaulas” que podem cercar um ser humano. Tem como ler as referências ao cinema e não pensar que o cara simplesmente adorava Peckinpah e o cinema avant-garde americano?
SPOILER de levezinho sobre as próximas páginas:
Mas enfim, o livro foi muito bem pra mim até Eskhaton, depois ele ficou meio engatado. Comecei a perceber aquilo que todo mundo fala, dele ser repetitivo – putz, o Don Gately vai começar a falar do AA e não vai parar NUNCA MAIS, repetindo uma coisa lá umas 3x – e trabalhar ideias infinitamente, sendo que, volta e meia, são ideias chatas, como quando ele exagera no papo do tênis ou da matemática – com termos técnicos e etc. O lance dele fragmentar algumas histórias anda me irritando também, toda vez que vem um capítulo do Marathe/Steeply eu nem lembro mais onde que estava a conversa deles, assim como o capítulo do jantar do Dia da Interdependência e o filme do Mario, que é todo picadinho. /SPOILER
Porém estamos ai, firme e forte, rs.
Não sei se configura SPOILER, mas vá lá:
Só pra ver como cada leitura é diferente, eu to gostando muito mais dos trechos do Marathe/Steeply agora (também estou adiantada, cheguei na metade do livro) do que no início (pq também, agora eles estão fazendo muuuuito mais sentido pra mim). 😛
Ah, não é que seja chato de ler, acho que até muito pelo contrário, é muito provavelmente a parte que mais gosto de ler – atrás só das que envolvem o Orin -, mas creio que o separatismo e sua motivação são os assuntos mais complexos dentro da trama do livro e, fragmentado do jeito que é, fica confuso. Volta e meia eu tenho a impressão que deixei passar alguma informação e fico louco procurando os capítulos. Planejo um dia que estiver com paciência e sentir que a conversa deles acabou, procurar todos os trechos e ler tudo junto, pra ver se melhora o entendimento, rs.
Luiz, eu acho que já deram pistas sobre o porquê do separatismo. É um breve trecho, mas dá para sacar o porque Quebec quer, definitivamente, a separação.
Repetitivo e em looping, tal qual o Entretenimento, certo? Mesmo vendo a mesma coisa, os mesmos assuntos, nós continuamos absorvendo para chegar até o fim. Mas será que ele existe?
Porque a Graça é Infinita.
Que análise incrível!
Isso aqui podia muito bem servir de fecho quando, lá em março, o verão infinito tiver fim:
“DFW é o menino prodígio Hal Incandeza. A deprimida Kate Gompert. O gênio James O. Incandeza. O defeituoso Mário. Ele é o ser humano que deseja tanto ser entretido que quer ser entretido até a morte e ao mesmo tempo escreve um livro que é uma espécie de antítese do entretenimento em sua extrema dificuldade formal.”
DFW continua sendo, ele próprio, um personagem incrível. É fascinante a forma como ele constrói um mundo ao mesmo tempo repulsivo e ironicamente sensível. Porque, pelamordeDeus, não é possível que alguém tenha gostado das sei-lá-quantas-páginas ele precisa pra explicar a mecânica quântica-espacial-aristotélica-ritmista do Eskhaton. Só que curiosamente quando se desiste da coisa (dane-se Pemulis e as equações em forma de nota de rodapé) você percebe que o próprio DFW adotou a mesma estratégia. E a imagem final da anarquia em que se transformou o campo de jogo fez com que eu me acabasse de rir. E, juro, fiquei pensando como o sujeito deve ter se divertido escrevendo o diabo da cena toda e pensando: ‘oaí que beleza pra você que passou metade de um dia entanto entender a divisão armamentista e a forma de acordo dos líderes globais: a coisa toda só podia dar nisso mermo, uma confusão dos diabos com camarada correndo pra tudo que é lado’.
Me incomada, como tem se falado, a excessiva fragmentação, mas faço figa pra que, de alguma forma, tudo vá se resolver lá na frente. Os fios (‘recitas’, espelhos) vão ser ajustados e a colcha de retalhos vai terminar fazendo sentido.
Vamos em frente!
Abraços,
Talvez se resolvam, ou talvez ninguém perceba como se resolvem.
Há microcenas que servem para esse fechamento. Elas não recebem destaque se o leitor não der destaque.
In my humble opinion, a proximação com Kafka me pareceu tão forçada quanto o ensaio do próprio DFW sobre o dito-cujo. Hal devora a comida “selvaticamente”, logo, Hal lembra um “animal” à Gregor Samsa. (?) Ao menos pra mim, isso não fez sentido nenhum (e essa hipótese torna-se ainda mais temerária quando se leva em consideração o que virá nas páginas seguintes, próximas ao final).
Vidinho explicando o Eskhaton [sic]
https://www.youtube.com/watch?v=xJpfK7l404I
caramba, eu tinha visto este clipe há tempos. Agora tudo faz mais sentido. Passei até a entender mais esse capítulo que achei chato. rs Valeu! Sensacional.
O eskhaton, como a gente sabe, é um jogo regido por regras bem específicas e pouco maleáveis. Uma delas, e talvez a mais imperiosa, pelo menos do ponto de vista ético da coisa, prevê que sob hipótese alguma os jogadores poderão considerar seus oponentes como alvos FÍSICOS, pois não se “ganha pontos atingindo as pessoas concretas. Só as coisas que representam a realidade.” Essa normal é vital pra “sustentabilidade” da brincadeira, tão que vital que, quando avacalhada, deprava a porratoda de maneira irreversível. Pois bem, acho ique isso diz muito sobre a forma como os relacionamentos entre jogadores e comisão técnica se dá na ATE. Pra você ser bem-sucedido, é preciso ser CEREBRAL o tempo inteiro, não tem meio-termo. Assim como no jogo, tu não pode TOCAR no OUTRO, porque tu precisará, muito pelo contrário, porque o ideal mesmo é que tu exclua de com força qualquer tipo de ENVOLVIMENTO-AFETIVO-GENUÍNO com alguma coisa, caso ñ queira engrossar as estatísticas de ex-tenistas quase profissionais. Querem exemplos? É só pensarem nos dois atletas mais aspergererianamente (1) introspectivos da ATE: óbvio que falo de John WAYNE e Hal INCANDENZA. Ambos seguem direiitin o B-A-BA do Eskathon: são tão BRILHANTES na quadra quanto são OPACOS fora dela.
(1) aspergianamente: http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%ADndrome_de_Asperger
Oi Betão, gostei bastante da análise. Isso lembra muito “Federer Como Experiência Religiosa”. DFW tenta dar uma aura mística para o jogador, mas, na verdade, tudo que ele faz implica nesses momentos cerebrais, nessa racionalidade extrema.
Você enxerga que os vícios do Hal, fora das quadras, refletem essa busca incessante para preencher o vazio quando não se está jogando?
Sensacional! Concordo com a amiga ali de cima que comenta que o trecho poderia perfeitamente ser usado no ultimo post de Verão Infinito. Sim, é um livro sobre obsessões. É um livro muito humano, que faz ressaltar “the dark side of the moon”, o lado escuro de cada um de nós, enquanto seres humanos. As descrições e termos químicos, matemáticos e relativos ao tênis são mesmo um porre, ainda mais pra quem, como eu, não é lá muito entendida e interessada em tais assuntos. O que mais me cativa nesse livro é me ver tão espelhada. Digo, acho que todos nos vemos. É um livro sobre o ser humano e sobre muito daquilo que ele tão profundamente é e o quanto ele tão desesperadamente tenta esconder pra baixo do tapete. Posso não ser viciada em alcool, drogas, posso não ter um quadro clínico de depressão ou algo do tipo. Mas todos somos paranóicos, cada um a seu nivel. DFW escreveu um livro incrivelmente autobiográfico, que não exclui que as chances de nenhum de nós sentirmos uma identificacao pelo que está ali. São atos cotidianos, costumes, manias, ideias, pensamentos e “achismos” que temos e que achamos tao nossos mas que são “comuns”. Adoro os capítulos do AA, da casa Ennet, todos que envolvem Mario de alguma forma. Os capítulos entre Hal e Orin, da infância de James, das conversas entre Steeply e Marat. Marco todas as paginas de meu livro por me identificar muito com frases da narrativa, DFW descreve as coisas de uma maneira quase poética, de tão fiel. Me apaixono cada dia mais por ser um livro tão humano.
Aliás, se me permitem uma sugestão: recomendo ler o livro ao som da banda Unknown Mortal Orchestra. Os dois CDs são ótimos e por algum motivo, a vibe combina muito com a leitura!
Olar, pessoas!
Tô ficando de fora dos comentários por motivo inversamente proporcional ao de Luiz Eduardo de Taize. Tenho fé que a vida e o Carnaval me proporcionarão uma trégua para eu dar essa carreira e pegar vocês na próxima semana – oremos!
Bom, independentemente disso, pre-ci-so dizer que estou completamente de acordo sobre a presença de Kafka. E logo nas primeiras páginas (por exemplo, na narrativa sobre Erdedy “Ele se sentia parecido com o inseto dentro do suporte em que se encaixava a sua prateleira […]”) , mas, muitíssimo principalmente, quando Orin dá o ar da graça e, depois de tantas baratas mortas por asfixia, aparece a primeira frase de “A metamorfose” adaptada para Graça Infinita “Ele tinha acordado de uma noite de sonhos horripilantes”. Isso não é noia, gente.
Embora eu veja muito Kafka no livro – por meio do desconforto predominante -, eu não vejo em Hal. Pra mim, ficou muito forte essa carga em Erdady, naquela angústia louca da espera, onde nada, além de esperar, fazia sentido. Vi muito nesse ~capítulo~ de Orin. E tem algumas coisas soltas pelo livro, mas, em Hal, não vejo. Vou prestar mais atenção ou, de repente, mais pra frente, essa influência kafkaniana em Hal fique mais evidente pra mim.
Pode parecer meio óbvio e redundante, mas além de Kafka e Shakespeare, me chama a atenção até aqui o quanto há de Foster Wallace no próprio Foster Wallace. Me explicando melhor: ter lido antes o livro “Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio Que Longe de Tudo” provoca várias sensações de reconhecimento. Desde algumas óbvias como o ensaio sobre Kafka e a forma como ele vê o tênis no texto sobre Federer até algumas associações sobre a impossibilidade de escapar da dor, como no ensaio sobre a lagosta e de novo o texto do Federer. Há pensatas que remetem ao discurso de Isto é Água. Há insolitos que nos levam ao cruzeiro pelo Caribe. Eu quase vejo o Hal de camiseta que imita fraque sentado ao lado do Orin de fraque mesmo, quando eles só estão falando ao telefone sobre uma Cobaia.
Fora que a apresentação dos moradores da Clínica Ennet é puro Breves Entrevistas…
Não corri atrás de datas para saber se os ensaios são anteriores ou não ao Graça Infinita, mas também pouco importa. Curioso se aprofundar nas obsessões e paranoias do Foster Wallace entendendo as reincidências como ênfases no que o motivava a escrever.
Hal, Kate, James e Mario são mesmo todos ensaios de David (com duplo sentido).