Filmes de gênero operam através de um contrato implícito com seu público, confirmando e subvertendo expectativas relacionadas ao gênero em questão. Muitas dessas convenções estão diretamente ligadas a implausibilidades características: monstros em filmes de terror ocasionalmente parecem ter a habilidade de teleportar-se por trás das câmeras; heróis em perigo são frequentemente beneficiados por uma montagem que estica artificialmente o tempo necessário para desarmar uma bomba ou escapar de uma armadilha; etc.

Tudo isso é fácil de aceitar e faz parte da experiência. O problema é quando personagens começam a agir de formas que não se assemelham ao comportamento humano. Uma narrativa convencional pode ter inúmeras coisas absurdas (e o que não falta são filmes absurdos), mas se as reações dos personagens a essas coisas são igualmente absurdas, a conexão é quebrada, a identificação se dissipa e as pessoas começam a se perguntar por que aquele cara está fazendo isso, quando seria muito mais simples fazer aquilo.

Antes de Dormir quer que você engula uma premissa envolvendo uma condição neurológica um tanto elaborada: desde um acidente, Christine (Nicole Kidman) “perdeu” os últimos 20 anos de sua memória. Novas memórias não são formadas; toda vez que ela dorme, sua mente “reseta” até os 20-e-poucos anos, e todas as manhãs seu marido Ben (Colin Firth) tem que explicar que ela tem 40 anos e é casada com ele.

É claro que é completamente absurdo que um acidente pudesse causar uma condição tão precisa e específica sem demais sequelas, mas é fácil de aceitar em um filme. Filmes sobre distúrbios psíquicos frequentemente tomam liberdades, usando a condição mental do personagem como um elemento high concept para desenvolver a trama, o que não é necessariamente ruim e pode funcionar até em contextos prestigiosos como Uma Mente Brilhante.

O problema aqui não é que a condição da protagonista não existe, é que o filme não explora muitas decorrências plausíveis de sua existência hipotética, nem a utiliza para dizer algo relevante. Christine sofre basicamente de uma forma mais elaborada da condição de Leonard em Amnésia, mas enquanto aquele filme a utilizava de forma inteligente e metafórica, aqui ela está a serviço de um roteiro esburacado e sensacionalista cuja maior preocupação são detalhes sórdidos e reviravoltas.

Quase imediatamente após a rotina matinal do casal ter sido estabelecida, Christine recebe um telefonema misterioso de um psiquiatra (Mark Strong) que aparentemente a tem ajudado a recuperar sua memória perdida através de um tratamento experimental ou algo assim. Os dois têm encontros diários sem que Ben saiba, a pedido do o médico. Por quê? Teria Christine algum envolvimento com seu psiquiatra? Bom, o filme certamente vai levantar todas as hipóteses que puder, porque com basicamente apenas três personagens não há muitas conclusões possíveis.

E isso resume o modo em que a narrativa opera. Pessoas constantemente agem de formas que só fazem sentido quando consideradas em termos estruturais, conforme sua utilidade para preparar ou adiar a próxima revelação. O segundo ato vira um jogo bastante esquemático de esperar pela próxima memória, que invariavelmente vai surgir na ordem exata para levar a plateia a formular as teorias erradas. É como um roteiro escrito por um robô programado com alguns livros do Syd Field e do McKee, mas que não entende comportamento humano. É um filme preocupado com quandos e comos, nunca com porquês.

Obviamente, alguém não está sendo exatamente honesto nessa história, e revelações sobre a verdadeira natureza dos personagens vão aos poucos chegando à superfície. Quando você para pra pensar, essa condição da Christine parece ter sido criada especialmente para que segredos sejam mantidos da pessoa que ela aflige. Isso culmina em uma das reviravoltas mais estapafúrdias de todos os tempos, em que várias das ações prévias só fazem sentido como uma forma de esconder a verdade do público.

Reviravoltas são boas quando reconfiguram elementos da história, fazendo você finalmente enxergar algo que estava na sua cara o tempo todo. Antes de Dormir é um daqueles filmes desonestos em que a surpresa é construída em cima da omissão de informações relevantes de formas artificiais e contraditórias.

Com mais ambição, essa história poderia ter se tornado uma metáfora para relacionamentos abusivos, a mulher agindo como se o dia anterior não houvesse acontecido, o homem controlando seu comportamento, etc. Mas não, a única coisa que evoca essa ideia é o fato de a protagonista ser uma vítima, definida unicamente pelas coisas que homens fazem com ela.

Ou seja, além de não fazer o menor sentido e desperdiçar três bons atores, esse filme é meio desprezível, mas pelo menos só tem 92 min e a produção é suficiente para maquiar as imagens ao ponto em que olhar para a tela não é desagradável. Assim sendo, nenhum dos problemas chega a causar uma impressão muito duradoura, porque nada no filme causa uma impressão; no dia seguinte você acorda e esquece que assistiu.

 

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