Em uma resenha anterior, na qual falei sobre O longo adeus, comentei que Philip Marlowe é um dos detetives mais conhecidos da literatura e, também, que seu método de investigação, no que concerne a entrevistar os suspeitos, talvez seja sua grande marca no que tange à literatura policial. A capacidade de, numa conversa, fazer uma incoerência, uma inexatidão ou uma mentira vir à tona é algo realmente digno de nota nesse personagem, e o esmero de Raymond Chandler em aguçar as conversas e dar a todas as falas entrelinhas acusatórias, agressivas ou sarcásticas é o que torna cada diálogo de seus livros algo muito divertido.

Encontramos essa característica já em A dama do lago, romance publicado em 1943, dez anos antes do livro supramencionado. A cadência da história, que se adensa e se complica conforme o passar das páginas, coloca Marlowe frente a frente com desafios distintos daqueles que enfrenta no livro de 1953, o que contribui para atestarmos a evolução do personagem (que foi sofisticando suas abordagens,) e o escritor (que vai talhando cada vez mais esmiuçadamente as feições e a personalidade de seu incontestável protagonista).

O problema gerador da trama em questão é a contratação de Marlowe por um sujeito chamado Derace Kingsley. Ele deseja que Marlowe investigue o paradeiro e a situação de sua esposa, Crystal, que estava sumida. A questão é um tanto mais complicada do que parece, pois Crystal havia enviado um telegrama ao marido dizendo que desejava a separação para poder se casar com seu amante, Chris Lavery. Kingsley não está particularmente preocupado com sua situação conjugal, embora tema que o escândalo em potencial possa impactar sua posição e que, também, Crystal possa estar se metendo em uma enrascada.

O lago que figura no título do romance é o Little Fawn Lake, aprazível cenário bucólico no qual os Kingsley possuem uma cabana para temporadas de férias e último lugar onde Crystal foi vista. A investigação, portanto, tem de começar por ali, e é justamente lá que a trama começa a se ramificar e complexificar. O sujeito responsável por manter a propriedade de Kingsley é Bill Chess, um alcoólatra que foi abandonado pela esposa, Muriel, a qual possui uma semelhança física digna de nota com a desaparecida Crystal. Andando pela propriedade à procura de pistas, Chess e Marlowe descobrem a dama do lago: o cadáver de uma mulher que aflora à superfície da água depois de passar submersa tempo o suficiente para que tivesse sido desfigurada.

A essa altura, como é possível perceber, Chandler já alinhavou elementos suficientes para construir uma história policial bastante interessante. Já é possível imaginar, tendo à mão essas informações, várias possibilidades, vários suspeitos e um número bastante relevante de hipóteses, ainda que todas esperando por lapidação. A dama do lago, no entanto, é composto ainda por outras tramas, personagens e, consequentemente, possibilidades. Numa resenha tão breve, que não se quer sinopse do livro, mas, como diz o nome do site, um posfácio (pós-leitura, portanto), vou me limitar aos elementos já alinhados e descritos, não me estendendo sobre os demais.

É preciso dizer que não é tão fácil acompanhar os diversos fios e subtramas que vão, pouco a pouco, compondo a linha mestra da história de A dama do lago. O avanço das investigações de Marlowe vai ampliando o campo de possibilidades, incorporando novos personagens e novos problemas. Pode-se olhar para isso como uma possibilidade de enriquecimento da trama e das possibilidades de resolução do plot (efeito valorizado num livro policial), mas me parece que somente a alto custo pôde Chandler costurar as várias direções da trama. A escolha por uma tal estrutura, em que pese a resolução pessoal do escritor, talvez tenha se dado pelo fato de A dama do lago ser um livro baseado em contos publicados anteriormente, o que costuma afetar o andamento da história e a congregação “orgânica” delas.

Antes de ser um grande problema, contudo, tomar um cuidado especial com a memorização dos nomes pode dar conta de manter os laços da história devidamente apertados.

Seguindo na esteira de algumas de suas “obsessões pessoais e literárias” (talvez possamos chamar desse modo), A dama do lago traz as marcas típicas de Chandler, seja a femme fatale (presença especialmente impactante nesse livro), o policial durão, as intenções mesquinhas de alguns personagens, a preocupação algo vitoriana com a imagem pública e os escândalos e assim por diante. A capacidade interrogatória de Marlowe, também, já se encontrava afiadíssima em 1943, e os diálogos estão, a exemplo de O longo adeus, entre as melhores passagens do livro. Não à toa se tornaram, quase todos esses elementos e quase todas essas características, aspectos definidores do gênero noir, com sua atmosfera e estética próprias.

Há algo muito curioso nas histórias de Marlowe, algo para o qual as recorrências apontam, ainda que indiretamente. Vejamos. É comum que os casos trazidos à mesa do investigador-protagonista sejam mostrados por Chandler não somente como puzzles (problemas entendidos num sentido mais “técnico”), mas como situações revestidas e entranhadas em problemas de ordem moral. Não se trata de uma moral entendida num sentido altruísta ou moralista, mas de uma moral como concretude existencial, pois se refere a imbróglios amorosos, disputas corporativas, a imagem pública dos envolvidos, a relações conjugais etc. Nesse aspecto específico me parece que pelo menos dois desdobramentos podem/devem ser notados para melhor entender a escritura de Raymond Chandler: 1. a investigação, que é muitas vezes o suprassumo do romance policial, se torna muito mais convincente e muito mais interessante; e 2. Marlowe ganha em complexidade enquanto personagem, e a literatura de Raymond Chandler ganha tons de sentido e significado que transcendem a “mera” literatura policial (ou de investigação, ou de mistério).

Quanto ao primeiro ponto (1), há uma diferença na ênfase dada por Chandler aos casos de Marlowe ao valorizar a exploração do imbróglio que chamei de “moral”. Se posta diante do peso atribuído à “investigação em si” nas histórias de Agatha Christie e de Conan Doyle, por exemplo, a narração de Chandler dá maior espaço e relevância ao caráter prático e concreto dos problemas antes de seus pormenores “técnicos”. Explico-me: nas histórias de Hercule Poirot, em grande parte por conta da extrema vaidade intelectual que Christie lhe deu, há uma extensa exposição das ponderações e formas através das quais o detetive chegou à resolução do enigma. Nas de Sherlock Holmes há uma grande preocupação em demonstrar os mecanismos do método dedutivo do detetive, o que faz com que Conan Doyle invista muito em escarafunchar seus métodos de pesquisa e interpretação (o próprio fato da lupa ser um elemento emblemático de Holmes evidencia isso). Ou seja, de um ou de outro modo, há sensível importância atribuída ao método investigativo, enquanto Marlowe, aparentemente mais displicente em seus cotejos, foca em deslindar o caráter, a personalidade, os possíveis desvios e os motivos ulteriores dos demais personagens, o que dá uma “concretude humana” muito interessante às histórias de Chandler. Isso, às vezes, contribui para tornar as histórias mais convincentes, talvez se possa dizer, em termos de verossimilhança.

Com relação ao segundo ponto (2), avento-o mais como hipótese, já que ele demandaria uma investigação mais sistemática para ganhar maior solidez. Derivado da característica analisada no ponto anterior, surge a necessidade de um detetive que não só seja capaz de avaliar “moralmente” seus personagens mais a fundo (em proporção inversa aos pormenores “técnicos” do caso), mas também de avaliar sua própria ética investigativa, isto é, de se autoavaliar. É possível ver isso na forma como Marlowe recebe as demandas de seus clientes: ora sorrateira, ora abertamente, ele pondera sobre a justeza do trabalho, da demanda específica e do cliente. Se as julga justificadas, certas, ele as aceita.

Essa entrevista inicial de Marlowe com seu cliente reverbera por toda a investigação, pois a avaliação do investigador está diretamente ligada à justeza do caso segundo seus princípios, de modo que as ações do protagonista tenham uma dimensão moral que acrescenta complexidade ao personagem.

Justamente por esse motivo, também, é que a literatura policial de Chandler se torna um “documento humano” diferente, pois extravasa as fronteiras da literatura policial mais focada na investigação e na resolução do mistério (que não são fronteiras hierárquicas em termos de qualidade), e acrescenta densidade moral às aventuras de Marlowe. Curiosamente, apesar de todo o sarcasmo, de todas as tiradas quase grosseiras e dos métodos de persuasão e interrogação agressivos, Marlowe é um inconvencional guardião de certa moralidade (não moralista, é preciso reiterar). Por debaixo daquelas camadas de pessimismo, de dureza e de ironia cuidadosamente estabelecidas para evitar a pieguice, Marlowe tem um senso de ética muito forte, subjacente sim, mas presente.

Por essa razão é que há uma fímbria de tons filosóficos nas colocações de Marlowe, algo que ensaia qualquer rascunho sobre as feições humanas mais gerais: não é um tratado filosófico e está longe de ser o foco de Chandler, mas está lá, basta olhar. E, a meu ver, é um dos sutis toques que contribui tão positivamente para o carisma de Marlowe e para a literatura de Raymond Chandler.