Ano após ano mantemos a nossa tradição de publicar as melhores leituras do último ano no dia do aniversário do Posfácio. A pergunta é simples: “Qual o melhor livro que você leu esse ano?”.

A resposta não é complicada, não é um jogo de cena. A escolha pode ser de um lançamento de ficção ou não ficção, pode ser um clássico, um pulp, o livro de um amigo, autor desconhecido não publicado no Brasil.

Afinal, queremos saber o que te marcou nas leituras de 2014.

Nesta primeira parte, vocês conferem o que nossos convidados leram durante o ano:


Gabriel Pardal (escritor)

Li bastante em 2014. Li sobretudo artigos, ensaios, pesquisas a respeito dos assuntos quentes do momento. Muito se escreveu este ano e, além disso, num futuro próximo, muito vão escrever sobre o que aconteceu aqui. 2014 estará nos livros de História. Concentrado nisso, escolhi as duas leituras mais importantes pra mim.

Primeiro veio a do norueguês Karl Ove Knausgard e sua série Minha Luta, da qual eu li os dois livros traduzidos aqui no Brasil. Só o Karl Ove conseguiu me tirar da minha obsessão anterior: David Foster Wallace. Em vários momentos da vida eu ficava me perguntando “O que Karl Ove escreveria sobre isso daqui?”; também peguei o costume de pronunciar Karl Ove como um bordão para coisa nenhuma só porque é musicalmente bom dizer Karl Ove. Não consigo tirar Um outro amor, segundo livro da série, da cabeça. Quando eu não o estava lendo, eu estava correndo para algum lugar para lê-lo.

O segundo livro foi o livro mais falado e bombardeado desse ano, O Capital no Século 21 do francês Thomas Piketty. Se você se interessa por política, sociedade e se preocupa com o futuro, não deixe de ler. Piketty é economista e professor na Escola de Economia de Paris, e defende que o capitalismo, sem a devida regulamentação, não é a solução para reduzir a desigualdade entre ricos e pobres. Muito pelo contrário, tende sempre à concentração de riqueza nas mãos de um grupo menor. Já sabia disso, né? Mas leia pra você ver o quanto você também contribui para a manutenção dessa desigualdade.

 

William Zeytounlian (poeta)

Duas leituras marcantes de 2014:

I. Primeiramente, um livro que me marcou esse ano foi A morte de Virgílio (Benvirá, 2013), do austríaco Hermann Broch. Uma tarde, nesses dias que gastamos na casa de um amigo conversando entre nuvens de tabaco, me veio à mente a história do Walter Benjamin, enorme, com 2 metros de altura, tentando atravessar a fronteira da França com a Espanha carregando uma pesada mala de manuscritos. Nisso, meu amigo falou sobre A morte de Virgílio, que narra a volta do poeta romano ao império romano, ardente em febre, com a arca que carregava a Eneida, bem como seu desejo de destruí-la. Broch, que era judeu, começou a escrever este monumento literário quando estava preso pelos nazistas. O livro, de estilo extraordinariamente sofisticado e totalmente individual é a grande febre filosófica sobre um poeta em relação problemática com o Estado.

II. Outro livro que me marcou foi o Transformador (Demônio Negro, 2014), do poeta (nosso) contemporâneo Dirceu Villa. O livro é uma maravilha da inteligência e o poeta um exemplo para nós. Isso porque Dirceu é capaz de experimentar formas poéticas as mais diversas com naturalidade e profundidade impressionantes. Prova inconteste do sensível erudito, poeta e tradutor que é. Além disso, o livro ainda traz traduções, também diversas. Já informei Dirceu da raiva branda que sinto por ele ter escrito vários poemas que eram pra ser meus, mas que nunca logrei, diferentemente dele.

 

Victor Heringer (poeta)

(a) Um teste de resistores, Marília Garcia (7Letras, 2014)

Digo, como já disse outras vezes, e sem nenhum receio: a Marília é a maior poeta-pensadora deste país. Este novo livro é impressionante, poesia pensante e pensamento poetizante, aquela coisa toda. É bonito. É fértil. Há quanto tempo a gente não via um livro de poemas fértil?

(b) Esquilos de Pavlov, Laura Erber (Alfaguara, 2013)

Em 2014 tive a oportunidade de reler este romance em condições muito adversas (como membro de júri). Foi um pequenino oásis no deserto de celulose. Sou um velho apreciador de livro com figura, e este é um dos raros romances a utilizar imagens de maneira inteligente, não como muleta paisagística ou bijuteria referencial.

(c) Codex Seraphinianus, Luigi Serafini (Franco Maria Ricci, 1981)

Outro dia estava perambulando por uma livraria e topei com uma edição impressa do Codex. Nunca tinha visto um exemplar físico, só o li em formato digital (está disponível no Ubu). Fiquei maravilhado. Esse obscuro livro de 1981 me sugere algo da essência imortal da literatura, mas não consigo decifrar exatamente o que é. Ninguém conseguirá. Nunca.

 

Guilherme Gontijo Flores (poeta)

Vou citar algumas coisas que ficam, porque ficaram circulando na minha cabeça.

Na poesia nacional, foram duas antologias: Transformador, de Dirceu Villa, & Poemas: 1999-2014, de Tarso de Melo— pra mim, estão no mel do melhor. Na poesia estrangeira, O ponto da ternura da poeta israelense Tal Nitzán, pra mim, foi a melhor descoberta do ano, junto com The book of Frank, de CAConrad, que conheci em traduções de Matheus Mavericco (aliás, dono do melhor blog que apareceu neste 2014) & a coisa louca & lírica & embasbacante da poesia de Bob Kaufman (graças a Julia Bicalho Mendes, que me apresentou & emprestou).

O romance deste ano, pra mim, foi Assim na terra, de Luiz Sérgio Metz, publicado originalmente em 1995 & agora reeditado; também fiquei bem impressionado com As visitas que hoje estamos (2012) de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira, & A cidade, o inquisidor e os ordinários (2013), de Carlos de Brito e Mello — dois casos que me lembram como vale a pena me arriscar na prosa nacional. Acho que não li prosa publicada em 2014, no fim das contas.

Na teoria, são três: Sein und Zeit, de Martin Heidegger; Critique du Rythme: Anthropologie historique du langage, de Henri Meschonnic; Grammophon, Film, Typewriter, de Friedrich Kittler

 

Bráulio Tavares (tradutor)

Somente agora li grandesertão.br de Willi Bolle (Duas Cidades / 7Letras, 2004), cuja tese (minuciosamente argumentada) é que o romance de Guimarães Rosa é um grande “romance de formação” da nação e do Estado brasileiros. Estamos acostumados a ver ali uma trágica história de amor ou a glorificação da natureza épica do Sertão. Bolle nos mostra a trajetória política de um indivíduo rumo ao poder (o pacto com o Diabo é “uma representação criptografada da modernização do Brasil”), partindo do escalão mais baixo até uma aposentadoria confortável no fim da vida, guarnecido pelas armas dos ex-companheiros. Riobaldo mudou, para mim.

 

Jorio Dauster (tradutor)

Minha melhor leitura de 2014 foi também um trabalho de tradução: A balada de Adam Henry, de Ian McEwan. O livro trata em essência dos graves problemas éticos com que se defronta uma juíza da vara de família, em especial a recusa de receber uma transfusão de sangue que levaria à morte um adolescente que pertence às Testemunhas de Jeová. Mas os temas jurídicos são belamente entrelaçados às crises conjugais da magistrada, quando seu marido de muitos anos resolve buscar fora de casa um êxtase sexual que não encontra mais na vida a dois. E essas espirais de emoção se confundem e se mesclam irremediavelmente, tendo a música como vínculo porque a juíza é também uma consumada pianista amadora. Com essa obra, Ian McEwan confirma ser um dos maiores escritores vivos de língua inglesa.

 

Brontops Baruq (tradutor)

Vários livros mereceriam destaque: Rádio cidade perdida (Daniel Alarcon), Michael Kohlhaas (Kleist), os contos de Homem-Mulher (Sergio Sant´anna), a novela Khadji-Murat (Tolstoi), os quadrinhos El Heroe (D.Rubin) – uma espetacular revisão da história dos 12 trabalhos de Hércules – e King City (Brandon Graham). Posso eleger quatro? Dois não ficção: Longe da árvore, de Andrew Solomon, um catatau sobre o relacionamento entre pais e filhos, sobre amor, esperança e desespero; ZeroZeroZero, de Roberto Saviano, um livro para se perder a inocência sobre as engrenagens secretas que movem o mundo e a violência. Um de quadrinhos: Kaputt, adaptação de Guazzelli da obra de Curzio Malaparte: lindo e triste. E, finalmente, o ganhador do Pulitzer de 2008, A vida breve de Oscar Wao, do Junot Díaz, um misto quente, apimentado, apimentado e agridoce: uma saga familiar, equilibrando-se entre a história da República Dominicana e o percurso de um nerd preso na pequenez de sua vida.

 

Denise Bottmann (tradutora)

O estouro da artéria do cavalo húngaro, livro de contos do estreante amazonense Thiago Roney. Capturou-me pela verve, pelo frescor, pela graça, pelo viço mesmo. Sente-se o gosto do autor em contar a história – digo isso porque, em alguns livros, sinto mais o gosto do autor pelo texto, pelas palavras e pela construção literária do que pelos personagens, pela trama, pelo teor da narrativa. Desse vício de literatice, Thiago Roney não padece. É, sem dúvida, um contador de histórias. Algumas mais pungentes, outras mais singelas, todas sempre surpreendentes, divertidas, fecundas. Difícil escapar ao adjetivo “tcheckoviano” para descrever a sensação que se tem à leitura. Sendo estreante, só podemos torcer para que não se detenha nem se demore n’O estouro da artéria do cavalo húngaro, e siga rapidamente em frente.

 

Elvira Vigna (escritora)

gostei da eliane brum.

trecho:
“Hoje, ao lançar meus anzóis no lago nebuloso do passado, em busca de um mapa cujo único destino sou eu, percebo que escrever me salvou de tantas maneiras e também desta. Desde pequena eu tenho muita raiva – e quase nenhuma resignação. A reportagem me deu a chance de causar incêndios sem fogo e espernear contra as injustiças do mundo sem ir para a cadeia. Escrevo para não morrer, mas escrevo também para não matar.”
(Eliane Brum em Meus desacontecimentos)

 

Eric Novello (escritor)

Asa de sereia, do Luís Henrique Pellanda (Arquipélago Editorial, 2013) – Asa de sereia é um livro de crônicas, narrações curtas, boa parte delas publicada no site Vida Breve. O forte dele é a maneira como o Pellanda se impõe como narrador da cidade. Ele adota um ponto de vista lírico, brinca com a poesia que há nesse universo de pequenas coisas que formam a beleza do nosso cotidiano para construir seu texto e, com isso, nos entrega uma belíssima representação da realidade.

 

Guilherme Smee (escritor)

Oi gente! Bom a minha área de expertise é quadrinhos, então é isso que eu vou relacionar aqui. O melhor livro que eu li esse ano foi Leaping Tall Buildings, que é um livro de entrevistas escrito pelo pesquisador Christopher Irving e com fotos belíssimas de Seth Krushner. Irving entrevista nomões da indústria dos quadrinhos, desde a Era de Ouro até os quadrinhos independentes e digitais de hoje. Ele apresenta cada um deles destacando sua importância para a indústria de quadrinhos americana e conversando com essas pessoas como foi viver aquele tempo e criar aquelas criaturas e aventuras. Temos desde Will Eisner, passando por Stan Lee, Art Spiegelman, Neil Gaiman, Grant Morrison e gente da nova geração de quadrinistas como Chris Ware, Paul Pope, Becky Cloonan e Dash Shaw.

Já na área dos quadrinhos em si, tenho outras duas indicações. A primeira é O Quinto Beatle, de Vivek J. Tiwary, Andrew Robinson e Kyle Baker. Uma graphic novel bonitaça que conta a história de Brian Epstein, o empresário que foi responsável por todo o sucesso dos Garotos de Liverpool. Porém, a vida não foi camarada com Brian, além de ser um cara obsessivo, o empresário de origem judia também era gay enrustido. Se você gosta de Beatles, essa é uma história para ficar em número um na Billboard, seja nos EUA ou no UK.

Por fim, mas não menos importante, recomendo Parafusos: mania, depressão, Michelangelo e eu, de Ellen Forney. Recomendo, por já ter passado pela depressão avassaladora que a autora passou e também me questionava como ela, se os remédios que eu tomava não tolhiam minha criatividade. Só que ela fez diferente: foi atrás de biografias de grandes criativos, com problemas mentais – a maioria tem – para ver qual é a relação entre criatividade e loucura. O resultado está nesse graphic novel nada deprimente, que arranca gargalhadas e compreensão a cada capítulo.

 

Adriano Scandolara (poeta)

Não sei bem como falar de um livro de filosofia, inclusive porque não é minha área, mas O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia, de Gilles Deleuze & Felix Guattari, acabou sendo o livro que mais me empolgou no ano passado. Primeiro, esbarrei nuns textos com coisas interessantíssimas sobre alguns conceitos que os autores desenvolvem nele, como o de máquinas sociais – então peguei, passei o olho nos primeiros parágrafos e mordi a língua por todas as vezes em que pensei que eles fossem parte desses pós-modernismos chatos que não dizem nada com nada. Simplesmente não consegui parar de ler. Talvez esse apelo derive da temática – parte antropologia, parte história, literatura e psicanálise, com uma crítica (pós?-)marxista tão pesada às práticas psicanalíticas tradicionais, vistas como conservadoras, concentradas demais sobre o complexo de Édipo e a família, que acabou sendo motivo para os autores arranjarem briga com muita gente, incluindo Lacan, que não gostou nada da ideia de que os problemas e mecanismos psicológicos, como o desejo, possam ter origens sociais mais profundas do que a estrutura familiar. E, de quebra, a prosa é incrível. É difícil (provavelmente impossível apreender tudo numa primeira leitura), mas sem a obscuridade gratuita que as pessoas no geral associam à filosofia pós-estruturalista, ao mesmo tempo em que apresenta um senso de humor e até uma vulgaridade (no bom sentido) raras para um livro do gênero. Não dá para recomendar para todo mundo (Deleuze é um inimigo notório de Kant e Hegel, por exemplo… além de toda a psicanálise), mas é uma experiência pela qual é impossível passar incólume.

 

Alexandre Vidal Porto (escritor)

A leitura que mais me marcou em 2014 foi Deserto, do Luis S. Krausz (Benvirá, 2013, Vencedor do II Prêmio Benvirá de Literatura). Em autoficção, o autor conta uma viagem que, ainda estudante, fez à Inglaterra para visitar familiares que ele não conhecia. No entanto, para viajar, violou deliberadamente as regras do kibbutz no qual trabalhava em Israel.

O enredo é simples, mas as questões de identidade de que o livro trata são complexas e me fizeram refletir bastante. Gostei muito da leitura. Recomendo.

 

Bernardo Brandão (poeta)

Um dos livros mais interessantes que li recentemente foi o Antifrágil: coisas que se beneficiam com o caos. O autor, Nicolas Nassim Taleb, ficou mais conhecido com seu livro interior, A lógica do cisne negro, que tratava justamente dos cisnes negros, esses acontecimentos inesperados que trazem grandes consequências, como, por exemplo, a Primeira Guerra Mundial. No Antifrágil, Taleb desenvolve a ideia: se os grandes acontecimentos surgem, imprevistos, como cisnes negros, não devemos tanto insistir nos métodos de previsão, mas em tornar nossos sistemas (políticos, econômicos, etc.) antifrágeis, ou seja, configurados de tal forma que, em uma situação de crise, não apenas resistam, mas se tornem mais fortes. Taleb aplica o conceito de antifrágil a uma variada gama de situações, da política à saúde, recuperando, nesse trajeto, ideias dos estoicos, da teoria do caos, etc. Em suma, um livro bastante abrangente, que não pode ser categorizado facilmente e que nos lembra, em um mundo tomado pelo desejo de controle, que é esse desejo, talvez, o verdadeiro perigo.

 

Luisa Geisler (escritora)

2014 foi um ano estranho pra mim em termos de leituras. Tive meses em que lia um livro por semana e meses em que mal li xerox da faculdade. Tentei focar no #readwomen2014, então comecei a conhecer Zadie Smith (White Teeth e NW), Chimamanda Ngozi Adichie (Americanah, Half of a Yellow Sun), Socorro Acioli (Cabeça do Santo) e a estreante Débora Ferraz (Enquanto Deus não está olhando). Zadie e Chimamanda eram autoras que eu estava há horas pra ler, e me arrependi de não ter começado antes. Outros livros bons deste ano foram The Hours (Michael Cunningham) e contos do Cortázar (comprei uma edição bonita de contos completos dividida em três livros, estou pra terminar o terceiro então não sei como contabilizar). Mas, sei lá, cópias de capítulos que usaria no TCC foram a maior parte das minhas leituras.

 

Bruno Azevêdo (escritor)

Meus 3 livros de 2014 seguem uma linha de raciocínio.

1. Em nome do desejo, de João Silvério Trevisan é um livro do começo dos anos 80. Foi meu terceiro Trevisan e de longe o mais impactante. João Silvério faz um misto de memória e “tese” ao construir um livro catecismo (a narrativa é construída de perguntas e respostas, como nos livros de seminário) no qual tenta conciliar o inconciliável: sua “vocação” religiosa como seminarista e a sensibilidade homoafetiva que aflora justamente no seminário. Um menino frágil e altamente intelectualizado entende a experiência da paixão como uma transcendência e simplesmente não entende o porquê de seu amor ser proibido. Ao tentar ler na própria bíblia a legitimação de seu amor (e de todos os amores) João Silvério Trevisan compõe a mais poderosa história de amor possível, posto que é um amor-carne para além das paixões da própria carne.

Trecho:
“• Não se poderia chamar isso de estado de amor obsessivo?
– Não. Simplesmente porque não existe amor que não seja obsessão. Se não, como definir e esclarecer os motivos pelos quais alguém é atraído especificamente por alguém e o ama apaixonadamente? Por que, tantas vezes, o amor é uma ponte de mão única, onde o sentimento entregue não é retribuído? E por que, ao contrário, é algumas vezes misteriosamente retribuído e a química da felicidade funciona? Como explicar essas incógnitas senão pela permanente obsessão de romper os limites entre o eu e o outro? O que nos move em direção à absoluta gratuidade de amar e ser amado? Seria a procura da outra parte que nos falta, metafisicamente, porque nascemos apenas metade, como diria a mitologia grega? Seria a busca da mãe perdida, como sugeririam os psicanalistas? Ou uma tentativa de romper a indiferença do mundo e reconciliar o que somos com o que não somos, conforme diriam certos filósofos? Seria o amor uma tentativa de nos compreendermos através do espelho do outro? Ou uma deslavada tendência ao absurdo, um mistério puro e deliciosamente elaborado pela natureza, a fim de tornar mais definitivo, mais irrefreável e mais perturbador o impulso para fora de nós, impondo a desordem ao mundo e aos espíritos amorosos? Então, o amor seria uma grande brincadeira da natureza, entediada com a ordem da vida, e nós viveríamos uma molecagem básica, quando amássemos. Se, nesse terreno, ninguém entende nada e só existem hipóteses, como acusar Tiquinho de obsessivo? Tiquinho estava simplesmente interpretando o mistério do amor. Da maneira mais genuína. Num movimento de generosidade que, em sua vida futura, iria se reduzir cada vez mais, à medida que fosse descobrindo certas defesas e fórmulas. Naquele instante, Tiquinho era um bem-aventurado. Iniciava-se em sua vida uma fase de privilégio cintilante, onde se deflagravam forças inexplicadas por nenhum cientista e nem mesmo por ele, Tiquinho, que não se cansava de examinar com acuidade a pele, as roupas usadas, os restos de cabelos e as manchas úmidas da passagem de Abel pelas roupas usadas, que eram expressões concretas da relação entre Abel e o mundo. Por não achar explicações suficientes, Tiquinho mergulhava na obsessão, e aí ficava como um disco enroscado. Inaugurava ali sua experiência no delírio, deixando-se possuir pelo amor como por Deus – ou demônio, dependendo do ponto de vista e das circunstâncias. Sem dúvida, aquele Tiquinho é hoje lembrado com saudade. E inveja mesmo. Eis aqui a defesa da obsessão de Tiquinho. Pois, no mundo, delirar é preciso.”

2. A chegada em Darkover foi escrito em 1972 e, ao contrário do que possa parecer, não foi o primeiro título da série. O livro conta a história de uma nave colonizadora que perde o rumo e cai num planeta desconhecido e estranhíssimo que poliniza e faz tudo que vive entrar num cio coletivo. O desbunde e o desespero leva os personagens, pontas de lança da racionalidade científica da terra, a questionar seu próprio padrão de civilização enquanto decidem se reparam a nave e vazam dali ou montam acampamento em Darkover. O mais batuta é sacar o feminismo da Bradley em um tipo de história geralmente “masculina” e a forma como ela discute afeto, civilidade e tecnologia.

Trecho:
“O que realmente não pude enfrentar, começo a compreender agora, não foi apenas o conhecimento de que na loucura fizera algumas coisas proibidas com outros homens, mas sim o conhecimento de que as fizera com satisfação e de bom grado, que não mais acreditava que eram erradas e que para sempre depois daquilo, quando visse aqueles homens, haveria de lembrar o tempo em que nossas mentes se abriram por completo uns para os outros, em que conhecemos as mentes, corações e corpos uns dos outros, no mais total amor e partilha que seres humanos poderiam conhecer.”

3. Por escrito, Elvira Vigna, 2014. Elvira consegue conciliar o “amor radical” do Trevisan com a proposta de “ver o mundo” não só da Bradley, mas de toda a ficção científica. Nesse caso, o namoro sci-fi é com o cyberpunk (mais precisamente, pra mim, com o William Gibson). Tempo, Afeto e Tecnologia são as molas motrizes da história de uma mulher que foge. Tempo porque a reflexão inteira da personagem as baseia na percepção de blocos cronologicamente situados (é um livro de viagem no tempo), afeto não precisa de muita explicação, posto que é esse mesmo que se altera com as mediações tecnológicas e é essa mesma mediação, afetando nossas sensibilidades, que se torna a referência dos diversos tempos nos quais a personagem vive. É um livro sobre amores (ou o mesmo amor) onláine e ofláine, sobre amores em constante estado de entropia, onde tudo é meio. Recomendo muitíssimo a leitura do primeiro e do último parágrafo do livro em sequência.

Trecho:
“É na estação do metrô, o encontro. Com todos os e-mails, mensagens de facebook e tuítes que trocamos, fotos da rua e do prédio, com todas as instruções e mapas, o encontro é em estação de metrô. Porque assim não me perco.
‘Assim você não se perde.’
Costumávamos nos perder. De propósito. Costumávamos só ir. E, quando cansados e perdidos, sentávamos em uma sarjeta, esperando o mundo entrar nos eixos e na lógica. E depois seguíamos, confiantes, para qualquer lugar. Mas isso foi antes”

 

Samir Machado de Machado (escritor)

The Telleportation Accident, de Ned Beauman – um jovem cenógrafo alemão nos trinta tão autocentrado e preocupado em transar que é incapaz de ver o que ocorre à sua volta, um expatriado americano que vive de aplicar golpes em turistas em Paris frente à Shakespeare & Co, uma garota chamada Adele Hitler (sem parentesco) pelo qual todos se apaixonam, um milionário com um problema neurológico que o impede de diferenciar uma imagem de um objeto do objeto real, e um cientista serial-killer com uma máquina de teleporte. O modo como Beauman costura tantos absurdos de forma hilária, melancólica e sarcástica (a começar pelo parágrafo inicial espetacular) é genial – ou como bem resume a contracapa: “um romance histórico que não percebe em que época está”. Um dos livros mais engraçados e inventivos que já li. Uma pena que ainda não tenha tradução em português.

Teve também The Stranger’s Child, de Allan Hollinghurst – Inglaterra Eduardiana, véspera da I Guerra: jovem, brilhante e temperamental, Cecil Valance faz uma visita de final de semana à casa de seu amigo de colégio George Sawie, seduz George, a irmã deste, a família, a criadagem, faz uma bagunça e deixa um poema de recordação, que apos sua morte se tornara símbolo de uma época e assombrará a família por gerações. Numa trama que abraça um século, as traições da memória, arquitetura vitoriana, o fracasso intrínseco a toda biografia, as mudanças de postura da sociedade em relação à gays, Hollinghurst escreve seu livro mais solene e grandioso, seu “Reparação”. Ainda que não seja o seu melhor, foi com certeza uma das leituras mais intensas que tive em 2014 (quando li também seu The Spell, que colocaria logo abaixo, pelo contexto menos ambicioso e coloquial).