“Não é todos os dias que o etnólogo encontra uma ocasião tão propícia para observar, em sua própria sociedade, o crescimento súbito de um rito, e até de um culto. – p. 11”

O Natal já passou, mas, de fato, continua entre nós, um espectro que marca o calendário anual como horizonte a ser conquistado, em meio a enxurrada de comemorações cristãs que pululam por todo o ano. Por isso, ainda vem a calhar um pequeno texto do renomado antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009), um dos pilares do estruturalismo e pai da antropologia uspiana, que traz de forma sucinta e didática uma nova perspectiva à celebração natalina e à figura do Papai Noel.

Nesse livreto de menos de cinquenta páginas, bem ajambrado pela CosacNaify, em comemoração ao centenário do autor, Lévi-Strauss parte de um curioso episódio ocorrido em sua França natal, em meados de 1951, quando membros do clero manifestaram-se agressivamente em desaprovação à figura em ascensão do Papail Noel, condenando-o “como usurpador e herege” (p.7), paganizador da celebração religiosa, culminando num episódio público de expurgo e holocausto em que a figura do bom velhinho foi queimada em praça pública diante de crianças órfãs. À época, o jornal France-Soir noticiou o episódio com a manchete: “Papai Noel é queimado no átrio da Catedral de Dijon diante de crianças de orfanatos” (p. 6) – e a polêmica alastrou-se por todo o país.

Partindo do estudo desse exótico caso, o autor constrói um ensaio antropo-filosófico em que reconstrói alguns dos trajetos de origem das tradições natalinas ocidentais contemporâneas, encontrando paralelos em diversas ritos e símbolos, desde a Roma antiga, até os rituais katchina dos índios Pueblo (p. 24-26).

É mais fácil e ao mesmo tempo mais difícil estudas os fatos que se desenrolam sob nossos olhos, tendo como palco nossa própria sociedade. – p.14

 

Antes de mergulhar na análise do que o autor enxerga como “uma manifestação sintomática de uma acelerada evolução das crenças e dos costumes” (p. 11), destacando o “divórcio entre a opinião pública e a Igreja” (p. 10), unidas desde a Ocupação, Lévi-Strauss retrata configurações fundamentais de seu tempo e lugar. Assim, destaca a influência estadunidense na cultura francesa numa época imediatamente posterior ao fim da II Guerra Mundial, período em que o Plano Marshall exportou o american way of life para uma Europa dizimada, junto com a Coca-Cola e o Papai Noel tal como os conhecemos hoje, um momento ao que o autor se refere como uma “vasta experiência de difusão” (p. 13).

Seguindo por uma análise cada vez mais antropológica – vez ou outra escorregando em falhas anacrônicas ou reducionistas 1 –, Lévi-Strauss ressalva que esse movimento de difusão não é simples e nem mesmo acontece como uma via de mão única. Pelo contrário, a difusão cultural agiria por estímulo (stimulus difusion, p. 15-16), acontecendo quando há certa predisposição na cultura receptora e agindo como catalisadora à importação de novos costumes. Em outras palavras, o aspecto cultural em questão só entra por portas que já estejam abertas, encontrando, assim, melhor possibilidade de “aclimatação” em outros cenários.

O Natal é essencialmente uma festa moderna, apesar dos múltiplos traços arcaizantes. – p. 17

 

Para entender a figura central das festas natalinas contemporâneas, o Papai Noel, e o porquê de a Igreja olhá-lo com receio e suspeição, o autor reconstrói as origens do mito e desmembra seu valor simbólico. Sem revelar todas as suas descobertas – até porque sua forma explicativa é o que o livro tem de melhor –, aqui digo apenas que há uma forte relação entre a figura do bom velhinho, uma corruptela de São Nicolau, o santo católico de origem turca, conhecido por sua afinidade com as crianças, com as divindades pagãs das celebrações Saturnais e das festas do fogo da época romana. Para além, o autor também relaciona essa personagem festiva com o Abade do Desregramento (Abbas Stultorum), ou Lorde of Misrule da tradição inglesa (p.31).

Enxergando a figura do Papai Noel como a figura mística de um ritual de iniciação que toma parte do Natal (“Construído simbolicamente para representar a benevolência e a superioridade, é um pai, um rei, assim, uma autoridade” – p. 22), o autor compreende que a posição central das crianças na tradição natalina de distribuição de presentes representa também uma diferenciação de status entre elas que creem na existência de um ser com poderes divinos que a todos presenteia, e aqueles que não creem, os jovens e adultos, que têm uma posição mais alta na hierarquia social.

“Os ritos e mitos de iniciação têm uma função prática nas sociedades humanas: eles ajudam os mais velhos a manter a ordem e a obediência entre os mais novos.” (p. 25) – diz-nos o autor. Essa “ordem e obediência” é mantida permitindo aos adultos “comandar o excesso, mantendo-os dentro de certos limites” (p. 36), restringindo-se o poder das crianças à medida que estabelece regras e um determinado período do ano em que elas podem mandar e exigir, por exemplo presentes, que nada mais são do que símbolos que reestabelecem a paz nessa lógica social (p. 43-44 passim).

Num plano mais amplo da análise do ritual, a celebração natalina e a distribuição de presentes relaciona-se a uma “perspectiva sobre os vivos e mortos” (p. 29-30), presente em muitas tradições observadas pela Antropologia. Para o autor, o Natal contemporâneo representa o ápice de uma celebração sincrética (das festas de larvae e as katchina, p. 31), moldada sob influências e reapropriações de diversas tradições, incluindo a figura central do Papai Noel (do velho Saturno, o Julebox escandinavo e São Nicolau, p. 31-32):

Estamos diante de um ritual que cuja importância flutuou bastante ao longo da história; teve apogeu e declínios. (…) Assim, fundem-se e refundem-se elementos muitos antigos, introduzem-se novos, encontram-se formas inéditas para perpetuar, transformar ou reviver o uso da velha data. Não há nada de especificamente novo – sem jogo de palavras – no renascimento do Natal. (p. 19 e 21)

 

O autor traça, assim, uma cronologia explicativa de “analogias estruturais” (p. 34), em que o Halloween (“em que as crianças fazem o papel dos mortos para extorquir presentes dos adultos”, p. 41) e o Natal (“em que os adultos presenteiam as crianças para exaltando-lhes a vitalidade”, idem) relacionam-se pelo fato de celebrarem os vivos e os mortos, cada um numa ponta desse cordão simbólico.  

Concluindo, Lévi-Strauss aponta que esse simbolismo ritual tem também a função de estabelecer “uma melhoria de nossas relações com a morte” (p. 43). À medida que incentivamos as crianças a crerem no ser místico e divino do Papai Noel, que traz presentes do além, também nós prestamos culto ao além, emulando tradições tão antigas quando o ato de presentear alguém a quem se gosta. Para que os pequenos, “acreditando no Papai Noel, consistam em nos ajudar a acreditar na vida” (p. 46).

Os presentes de Natal continuam a ser um verdadeiro sacrifício à doçura de viver, que consiste, em primeiro lugar, em não morrer – p. 43.

  1. Como quando difere as supostas “causas reais” das formas percebidas pelo ator-personagem do campo, na passagem: “As razões aparentes que atribuímos aos acontecimentos nos quais somos atores são muito diferentes das causas reais que neles nos determinam um papel” p. 14, grifo meu