No presente texto objetiva-se fazer uma análise comparada entre os sonetos: O amor é fogo que arde sem se ver, de Luís Vaz de Camões, Amo-te quanto em largo, alto e profundo, de Elizabeth Barrett Browning (tendo como base para este estudo a tradução de Manuel Bandeira) e o poema Teresa, de Manuel Bandeira.

Essa análise será pautada pelos diálogos (aproximações e distanciamentos) que os poemas estabelecem com relação ao tema, aos aspectos formais e ao tratamento do tema a partir dos aspectos formais. Em relação ao tema, os três poemas em questão versam sobre o “amor”, contudo, em perspectivas diferentes.

Em O amor é fogo que arde sem se ver – um poema de Camões, que foi um dos mais importantes escritores do Classicismo, em Portugal – tem-se a abordagem  do “amor” em uma perspectiva universal. Nesse soneto, o eu-lírico, ao definir esse sentimento, o faz de forma metafórica e paradoxal, como se pode observar no verso “é ferida que dói e não se sente”. A dimensão paradoxal desse verso se dá pelo fato de que para termos a consciência de que estamos com dor, faz-se necessário que a nossa sensibilidade seja despertada. Tal fato nos leva a inferir que essa definição do sentimento amoroso pode aludir à tradução do próprio ser humano, que é, essencialmente, contraditório.

O eu-lírico, nesse poema, em nenhum momento se dirige a uma pessoa amada, pois o sujeito – que segundo a gramática normativa é aquele de quem se diz algo – é o próprio amor. Desse modo, o poeta não fala da amada, mas sim do sentimento de amar, o que nos leva a refletir sobre uma possível personificação do amor, que é um sentimento essencialmente humano, conferindo-lhe um “status” de deus, o que se evidencia pelo fato de que a última palavra desse soneto é grafada com a primeira letra em  maiúscula, “Amor”.

Enquanto no soneto de Camões o amor é abordado em uma instância universal, no soneto, Amo-te quanto em largo, alto e profundo, de Elizabeth Browning – autora do Romantismo inglês – o amor é visto em uma perspectiva mais subjetiva, endossando a existência de um “eu” – que se enuncia como o amador – e um “tu” – que é a pessoa amada. Tomando emprestada a definição de Émile Benveniste para a relação eu/tu, temos, no poema de Browning, “um eu que existe em função de um tu”.

Nesse soneto, o eu-lírico se dirige a uma segunda pessoa, evidenciando o amor incondicional que sente por ela, chegando a sugerir que esse sentimento perdurará após a morte, como se pode observar em “e, assim, se Deus o quiser, ainda mais te amarei depois da morte”, o que nos remete à concepção clássica do amor neoplatônico.

Esse tipo de amor se caracteriza por conceder um caráter espiritual – ideal – ao sentimento amoroso. No soneto em questão, ao dizer que amará a pessoa a quem se dirige, o eu-lírico pode estar sugerindo o futuro  encontro de sua alma com a alma da amada, no mundo espiritual.

O poema Teresa, de Manuel Bandeira, apresenta o tema “amor” de uma forma que se distancia bastante das abordagens feitas nos dois poemas anteriormente mencionados, pois nele define-se o amor por meio  de uma visão mais realista, na qual se expõe o corpo de uma mulher – Teresa –  ressaltando os seus defeitos e não suas qualidades.

Uma das leituras que pode ser feita desse poema é a do viés intertextual, pois ele é uma paródia do poema O ‘adeus’ de Teresa, de Castro Alves. Seguindo um ideal modernista – estilo de época ao qual pertence – Manuel Bandeira desconstrói o lirismo convencional, desestabilizando o leitor, que espera uma Teresa parecida com a de Castro Alves, pois as interpretações do poeta pernambucano para Teresa acabam em uma atmosfera de sonho que se aproxima de um pesadelo.

Em O ‘adeus’ de Teresa, o eu-lírico infantiliza Teresa, que chora e soluça feito uma criança; em diversos momentos, Teresa também é chamada de pálida, uma característica comumente atribuída às personagens de estórias românticas, que se viam impossibilitadas de viverem o amor. Em contrapartida, em Teresa de Manuel Bandeira, o eu-lírico descreve Teresa de forma seca, real, dando ênfase aos defeitos da mesma.

No que tange aos aspectos formais, os sonetos O Amor é fogo que arde sem se ver, de Camões, e Amo-te quanto em largo, alto e profundo, de Elizabeth Browning, embora pertençam um ao Classicismo e outro ao Romantismo, se aproximam na medida em que utilizam uma forma fixa de composição, denominada  soneto.

Elizabeth Barrett Browning

Ambos os poemas são compostos por versos decassílabos, e se utilizam da linguagem culta, entretanto, quanto à classificação das rimas eles se diferem, em alguns aspectos.

O soneto de Camões possui o esquema de rimas ABBA ABBA CDC DCD. Nos dois quartetos, as rimas ABBA são consoantes, externas, as rimas “B” são emparelhadas e as rimas de tipo “A” são interpoladas. As rimas “A”, segundo o critério gramatical, são pobres, pois “ver” e “doer” – no primeiro e quarto versos do soneto- , e “querer” e “perder” – no quinto e oitavo versos do soneto – pertencem a mesma classe gramatical, são verbos.

Já as rimas “B”, são rimas ricas, pois “sente” e “descontente” – no segundo e terceiro versos – e “gente” e “contente” – no sexto e sétimo versos, pertencem a categorias gramaticais diferentes. O vocábulo “sente” é um verbo e a palavra “descontente” é um adjetivo. A palavra “gente” é um substantivo e a palavra “contente” é um adjetivo .

Em relação aos dois tercetos do soneto de Camões, é possível dizer que eles possuem rimas consoantes, cruzadas CDCDCD ,e pobres, pois os vocábulos: “vontade” – no nono verso, “lealdade” – no décimo primeiro verso -, e “amizade” – no décimo terceiro verso, “vencedor” – no décimo verso -, “favor” – no décimo segundo verso -, e “amor” – no décimo quarto verso –  pertencem à mesma classe gramatical, são substantivos.

No soneto, Amo-te quanto em largo, alto e profundo, de Elizabeth Browning, tem-se a presença de rimas no esquema ABAB ABAB CDE CDE, que podem ser classificadas como consoantes, – exceto as rimas D, que são toantes – externas e alternadas.

No primeiro quarteto, as rimas “A” são consideradas rimas ricas, pois “profundo” – no primeiro verso – e “mundo” – no terceiro verso – pertencem a categorias gramaticais distintas, a primeira palavra é um adjetivo com valor de advérbio, e a segunda é um substantivo e as rimas “B”, também são rimas pobres, pois “transportada” – no segundo verso – e “entressonhada” – no quarto verso – são substantivos.

No segundo quarteto, as rimas “A” são consideradas rimas ricas, pois os vocábulos “segundo” – no primeiro verso – e “inundo” – no sétimo verso – , pertencem à classes de palavras diferentes, sendo elas, respectivamente, substantivo e verbo. As rimas “B” também são consideradas rimas ricas, pois, os vocábulos “sossegada” – segundo verso – e “nada” – no quarto verso – pertencem a categorias gramaticais diferentes, o primeiro é um adjetivo e o segundo é um substantivo.

Nos dois tercetos, as rimas “C” são rimas ricas, pois as palavras “penas” – no nono verso – e “pequenas” – no décimo segundo verso – pertencem a categorias gramaticais diferentes, pois a primeira é um substantivo e a segunda é um adjetivo.

A rimas “D”, que, aparentemente, não existem, porque são toantes, isso é, rimam apenas a vogal tônica, o “e”, entre as palavras “prece” e “quiser”, podem ser consideradas rimas ricas, porque os vocábulos citados acima, são, respectivamente, substantivo e verbo. Do mesmo modo, as rimas “E”, também são consideradas rimas ricas, pois as palavras “forte” – no décimo primeiro verso – e “morte” – no décimo quarto verso – pertencem a classes gramaticais diferentes, a primeira é um adjetivo e a segunda é um substantivo.

Acerca do quesito “forma”, o poema Teresa, de Manuel Bandeira, se difere dos poemas de Camões e Elizabeth Browning, que são composições de forma fixa. O poema de Bandeira é composto por 12 versos, dispostos em três estrofes de três versos – tercetos. Quanto à métrica, seus versos se classificam como versos livres, o que confere ao poema um tom prosaico, um recurso poético muito presente nas criações poéticas do estilo de época Modernismo.

Quanto ao tratamento do tema  a partir dos aspectos formais, cada um dos três poemas possui suas particularidades.

O amor é fogo que arde sem se ver, de Luiz de Camões, é um soneto, que, como foi dito anteriormente, é a forma mais nobre de composição de poemas. Ao partir do pressuposto de que, para o poeta, a criação seja uma forma de representar a realidade e o “amor” seja um tema nobre, que está intrinsecamente ligado à natureza humana, é possível dizer que a utilização dessa forma de composição para tentar definir o sentimento “amor” seja uma tentativa de aproximação entre forma e tema, pois se trata de um tema nobre sendo abordado em uma composição de forma  nobre, o soneto.

Assim como a forma do soneto é fixa, a ideia de que o amor seja um sentimento contraditório é defendida de forma veementemente fixa –  durante todo o poema – o que se pode evidenciar através da anáfora do verbo “É” que ocorre em quase todos os versos, e é sucedida, geralmente, por uma metáfora e um paradoxo, como se pode observar em “É um contentamento descontente”. Entre o verbo “é” e o pronome indefinido “um” há uma comparação implícita – metáfora – e entre as palavras “contentamento” e “descontente” há um paradoxo – uma contradição absurda.

O soneto sempre é uma composição que “tira a gente do chão”, nos conduz a um estado de transcendência, por fatores como a métrica específica, a combinação de rimas, entre outros, que exprimem um cuidado do poeta com a sua criação e o efeito discursivo que ele pretende causar com ela. Nessa perspectiva, é possível dizer que em Amo-te quanto em largo, alto e profundo, de Elizabeth Browning, que nos apresenta como temática uma reflexão sobre o modo de amar do eu-lírico, o cuidado – a dedicação do eu- lírico para com a amada – pode ser comparada à dedicação e aos cuidados que a composição do soneto exige.

Sendo o soneto uma composição clássica, Elizabeth Browning, ao retomar essa forma de construção poética no Romantismo, retoma também, uma forma clássica de se entender o amor, o neoplatonismo. Em suma, um tema clássico – a concepção do amor ideia, espiritual – é abordado em um soneto de uma escritora do Romantismo, por intermédio do modelo de uma composição clássica.

Assim, é possível perceber um desenvolvimento progressivo nesse texto poético, que tem o seu ápice nos últimos versos quando o eu-lírico exprime o seu anseio de dedicar amor eterno – transcendente – à amada.

Em Teresa, de Manuel Bandeira, a abordagem do tema a partir dos aspectos formais ocorre de forma livre, ou seja, como se pode perceber, em outro poema de Bandeira, denominado “Poética”, o lirismo tem que ser expresso conforme a condição humana, livre. Em Teresa, Bandeira rompe com a métrica na construção poética, do mesmo modo que rompe com a forma nobre de se discutir o amor, utilizando aliterações, entre outros recursos. Os versos livres desse poema refletem a forma livre de Bandeira retratar o amor, dando enfoque ao feio, aos defeitos, ao que é real e não ideal. Esse afastamento da estética clássica evidente no poema em questão nos permite visualizar um modo modernista de expor as coisas: falar daquilo que está perto, que é palpável.

Manuel Bandeira

Na perspectiva de liberdade na forma de escrever poesia – de falar do amor – é possível perceber a presença do prosaico em Teresa, como na segunda estrofe, quando temos a presença dos parênteses como recurso de explicação: “(os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando até que o resto do corpo nascesse)”. Temos, nesse caso, um recurso discursivo inserto na poesia.

É possível perceber uma gradação nesse poema. Em um primeiro momento, o eu-lírico expõe todos os defeitos de Teresa e, depois, na última estrofe,  muda a sua concepção sobre ela, o que é evidenciado pela intertextualidade com o livro de Gênesis da Bíblia, que ocorre em “e o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas”. A partir desse verso, é possível inferir que a percepção do eu-lírico sobre Teresa se transformou em uma concepção de plenitude, perfeição, o que, de certo modo, nos remete ao que Bandeira questiona nesta poesia, o amor neoplatônico.

No que tange ao tratamento do tema a partir dos aspectos formais do poema, ainda é possível fazer uma outra leitura desse poema, a de que as três estrofes do poema de Bandeira possam ser entendidas como três fases da vida da mulher, como a definição do amor por meio da forma do corpo da mulher.

A primeira fase pode ser a representação da infância, o que se pode evidenciar no verso “achei também que a cara parecia uma perna”, o que nos remete à expressão popular de que criança tem “cara de joelho”, ou seja, é tudo igual.

A segunda fase pode ser entendida como a da adolescência da mulher, e a terceira, como o amadurecimento da sensualidade feminina, na qual temos uma mulher plena, completa, adulta, com a sensualidade à flor da pele, como se pode observar em “os céus se misturaram com a terra”. Temos, assim, céu e terra se completando, se unindo, quase que como na concretização do ato sexual.

Sobre a autora: Cleonice Machado é mestranda em Literaturas de Língua Portuguesa, com ênfase em Literaturas Africanas. Acredita que isso seja informação demais. Para o caso de não ser uma overdose de informações, é, também, apaixonada por Futebol e Política. Quando não está no Mineirão, assistindo aos jogos do Clube Atlético Mineiro, ou nas ruas, militando, é professora de Literatura. Mas, sem ingerir quantidades cavalares de café, “não sou nada, nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Vocês a encontram no Twitter como @cleoamachado