Nem sempre fui assim, mas hoje há amigos que apostam se consigo me calar por pelo menos dois minutos. Mesmo que difícil, sempre ganho a aposta – e tomo isso como um alerta de que estou especialmente falante no dia.

Reconheçamos que dois minutos é pouco; duas horas, sim, é outra história. No último dia de março, participei do Método Abramović e, meio sem saber, me propus a experimentar esse silêncio mais duradouro.

Digo “meio sem saber” porque – assim como não costumo ler sinopses, quartas capas ou resenhas dos livros em que mergulho – não pesquisei a respeito da experiência antes de fazer minha inscrição. Sabia quem era Marina por conta de um vídeo em que reencontra um artista a quem não via em 23 anos1, assim como já tinha visto um trailer documentando a participação de Lady Gaga no Método, antes desta lançar seu álbum ArtPop – no Sesc Pompéia não houve nudez.

Somos orientados a trancar nossos pertences – bolsa, celular e tudo que há nos bolsos – em um guarda-volumes. Ficar descalço é opcional, mas parece uma boa ideia: baibai, tênis. Antes do experimento, passamos por uns quinze minutos de aquecimento dos sentidos: esfregamos as mãos uma na outra até esquentá-las e depois enfiamos dedos no nariz, arregalamos as orelhas, balançamos bochechas e olhos até, finalmente, remexermos o corpo inteiro.

O ruim de não ser criança é ter de me segurar para não rir das caretas. Vejo mais semblantes de austeridade do que de leveza. Findo o aquecimento, somos divididos em quatro grupos. Tão logo recebemos os abafadores de som, a experiência se individualiza: cada um só, sem distrações, com o seu silêncio.

A primeira meia hora é de caminhada lenta, os pés pousando e descolando da pedra gradualmente. Algo não está certo: minha coluna começa a doer, às vezes acelero o passo sem notar e tento ir mais devagar, o que me faz perder o equilíbrio em dois momentos – não caio, mas quase piso acidentalmente nos cristais jogados ao lado do espaço de passeio.

Tento prestar atenção no silêncio – a lentidão dos passos evita que os escute “internamente” – e percebo que ele não é absoluto. Ainda que quase inaudível, ouço um helicóptero. Engolir saliva ou tossir baixinho (estou gripado) parecem tentativas ostensivas de sabotar o Método – vejo a hora de ser convidado a me retirar quando estralo a coluna. Solto um suspiro quando descubro que o tempo acabou.

No exercício seguinte, ficamos sentados. Há dois pares de cadeiras voltadas umas para as outras, umas dez voltadas para uma parede em branco – penso que encará-la deve ser parecido com a cegueira de Saramago – e três ou quatro bancos. Eu e um rapaz com cabelo rastafári não conseguimos cadeiras individuais e somos orientados a ficar em lados opostos do mesmo banco, as costas de um servindo de encosto para as do outro.

O mundo aqui silencia, já diriam os Baudelaire snicketianos; sentado, noto que o silêncio se aprofunda. A mente acalma, enquanto o corpo tenta se adaptar ao do outro: não quero pesar muito e empurrar o outro, assim como não pretendo desgrudar, ao tentar manter a coluna ereta sem me recostar. Durante alguns minutos escuto as batidas de um coração: não sei se é o meu ou o dele – ou se são ambos, no mesmo compasso. Essa meia hora de comunhão me parece mais significativa do que a dos que passaram o mesmo período se encarando.

É chegado o tempo de ficar de pé diante de totens de madeira, cada um destes com três cristais (do tamanho de tijolos) incrustrados. A ponta de um dos cristais pressiona a junção entre testa e nariz, causando sensação semelhante à daqueles massageadores metálicos de cabeça, enquanto os outros dois me espetam tórax e abdome. Penso em como passaria algumas horas de bom grado naquela posição, por conta do cristal superior.

No entanto, quinze minutos depois sou orientado a me sentar e encarar um rapaz aleatório. Em vez de tentar descobrir se devemos nos comunicar com o olhar de alguma forma, sigo na busca pelo máximo de silêncio. Encaro o moço como teria enfrentado a parede branca saramaguiana. Creio nunca ter ficado tanto tempo sem piscar.

Por fim, deito por meia hora numa cama de madeira. No alto da cabeceira, outro cristal incrustrado, sob o qual posiciono cuidadosamente a cabeça – não posso me levantar bruscamente, tenho que me lembrar disso.

Devo ter dormido. Digo, muita coisa acontece – faço notas sobre a experiência, converso com algumas pessoas, calço os tênis nas mãos e vou para o ponto de ônibus plantando bananeira – até que abro os olhos e percebo que ainda estou deitado. Passo ainda uns vinte e cinco minutos encarando o cristal até o fim do exercício, pensando em como o tempo realmente passa mais rápido nos sonhos.

Finda a experiência, já sem abafadores de som, calço os tênis do modo tradicional e volto em silêncio para casa.

Finda a experiência? Finda mesmo?

Acho que não.

marina

  1. Na descrição de uma das cópias desse vídeo, uma com Coldplay de trilha sonora e em português: “Nos anos 70, Marina Abramovic viveu uma intensa história de amor com Ulay. Durante 5 anos viveram num furgão realizando todo tipo de performances. Quando sentiram que a relação já não valia aos dois, decidiram percorrer a Grande Muralha da China; cada um começou a caminhar de um lado, para se encontrarem no meio, dar um último grande abraço um no outro, e nunca mais se ver. § 23 anos depois, em 2010, quando Marina já era uma artista consagrada, o MoMa de Nova Iorque dedicou uma retrospectiva a sua obra. Nessa retrospectiva, Marina compartilhava um minuto de silêncio com cada estranho que sentasse a sua frente. Ulay chegou sem que ela soubesse…”