Há algo de podre no reino de Deus. Quem diz isso é Pablo Larraín, atualmente um dos diretores mais talentosos na América Latina, realizador de pequenas pérolas como o recente No (2012), indicado ao Oscar de Melhor Estrangeiro, e que agora, com O Clube, vencedor do Urso de Prata em Berlim, nos apresenta uma história de crimes e pecados, hipocrisia e oração.

Numa pequena casa amarela no litoral chileno, um grupo de padres vive recluso sob a diligente vigilância de uma freira. Todos ali se envolveram, ao longo do sacerdócio, em escândalos sobre os quais nem eles nem a instituição sob a qual se abrigam querem falar, e por isso encontram-se entocados num exílio de desolação e isolamento. Não obstante, como parece natural à alma humana, esses homens encontram razões para rir e celebrar, bem como distrações e divertimentos, como apostar em corridas de cachorros, faturando uns bons trocados com uma cadela que encontraram na rua. Nenhum arrependimento, nenhuma abnegação.

Eis que um dia, porém, um novo padre é inserido na casa e a partir disso uma confluência de acontecimentos traz desestabilidade à harmonia celibatária desses indivíduos esmaecidos – tão sem cor e sem vida quanto a cinematografia belíssima de Sergio Armstrong –, reavivando discussões das quais há muito eles fugiam.

Os fios condutores dos turbulentos acontecimentos que se seguem são Sandokan (Roberto Farias), uma espécie de bêbado da vila, e o padre Garcia (Marcelo Alonso), ambos excelentes, profundos e atormentados. Garcia, com suas feições de São Francisco, é o dedo inquisidor mandado pela própria Igreja ao teto profano dos padres pecadores. Ele mesmo, aos poucos, contaminado pelas ideias impuras, pelos pecados malditos, pela falta de humildade e arrependimento desses exilados e esquecidos, tal qual parentes dos quais se tem vergonha.

Assim, a história de O Clube tem um quê de diabólica. Os planos em zoom in e zoom out e a câmera que por vezes se desestabiliza, como que embriagada, contribuem para a construção dessa atmosfera de purgatório. Mas se o inferno é feito de chamas e enxofre, o purgatório de Larraín é de um gelo que corrói os ossos. Mais uma vez aqui, o excelente trabalho de Sergio Armstrong contribui para o clima de desencanto e desalento em direção ao qual essa história caminha, com suas noites cada vez mais escuras e suas cores cada vez mais baças.

Trata-se aqui de uma história que põe em destaque o questionável comportamento dos “homens de Deus”, e mesmo sendo construída como crítica às falhas históricas da Igreja Católica, pode encontrar paralelos com críticas aos “homens de fé” de outras religiões ou denominações, que pelo álibi do trabalho sacerdotal ludibriam, agridem, roubam e destroem as vidas de ovelhas simplórias que cruzam seus caminhos.

Permeando toda a narrativa também estão questões ligadas à sexualidade, especialmente repressão e norma. A dificuldade de se romper com as normas, especialmente em sociedades centradas numa crença religiosa, e aceitar as diferenças. Além da complexidade do fator sexual humano, com suas nuances que ultrapassam (e muito) o simples binarismo homo ou hétero. Coroando essa problemática complexa que o autor empreende explorar de forma delicada e honesta, está a problematização do celibato, motivo de intensas e históricas discussões no seio da Igreja.

Recheada de belíssimas canções religiosas, o estilo clássico e sisudo do filme por ora pode parecer cansativo. Aliado a uma trama complexa, profunda e doída, por vezes parece pesado demais. Às vezes, diante de um filme que joga muito sobre nossas costas, mente e coração, é comum a sensação de que não vamos aguentar. Quando mais novo, senti isso com 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968), e depois com Magnólia (1999), Réquiem para um Sonho (2000) e até Fonte da Vida (2006), mas diferente desses filmes mindblowing que querem quebrar nossa cabeça por dentro e parecem esforçados demais em mostrar a inteligência de seus autores, O Clube encontra sua dureza por ser direto e não exercer nenhum julgamento sobre os acontecimentos que exibe. Ele não tenta resolver um problema, não tenta construir uma tese, tampouco denunciar um fato. Ao fim e ao cabo, o que esse filme quer fazer é simplesmente mostrar a dor – e através disso, também nos fazer senti-la. É, assim, um exercício de compaixão diante das dificuldades e defeitos da alma humana – e o que é a compaixão senão um dos valores centrais da teologia católica?

Não se espante, tampouco se amedronte, tenha coragem, pois esse filme põe o dedo em feridas mal tocadas há milhares de anos em nome da proteção a uma instituição que atualmente vive dias de crise (identitária, de popularidade e, vejam só, também espiritual). Aqui discute-se religião, discutem-se os valores religiosos e também se problematiza a hipocrisia e mesquinhez da alma humana. Homens santos praticando atos tão mesquinhos é algo que choca, pois como bem disse C.S. Lewis: “De todos os homens maus, os homens maus religiosos são os piores”.

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P.S.: O filme foi selecionado pelo Chile para representar o país numa vaga ao Oscar 2016. Quem sabe ano que vem o vejamos disputando com o brasileiro Que Horas ela Volta? no principal prêmio do cinema mundial?