Christian Dunker lançou pergunta cabeluda num artigo de 2014 no blog da Boitempo, uma que tem andado comigo. A pergunta era o título do texto, “Que fim levou a direita ilustrada?”, e servia como linha de argumentação para tentar entender a metamorfose histórica do pensamento de direita no Brasil até sua ascensão recente, tomando as lembranças do autor como escopo para conduzir a reflexão. É texto espirituoso e engajado, cuja habilidade está em demonstrar a embasbacante descontinuidade que marca o tema em tela: passou-se dos exemplares cultos do pensamento liberal que predominaram até meados do século até a galeria sensaborona e fascistóide de tempos mais recentes.
Falei isto para poder dizer que foi à sombra da pergunta de Dunker que li os textos grandemente autobiográficos de Nelson Rodrigues, cujo mordacíssimo título é O óbvio ululante – como quem dissesse: ‘Eu não deveria ter que te explicar isto…’. O que as crônicas e memórias do (auto-intitulado) “reacionário” revelam está muito além de um velho ranzinza ou um direitão velha-guarda qualquer, desses que volta e meia vemos berrando no Twitter, no Whatsapp ou na vida real. Trata-se de um escritor sensível e culto, de Dostoiévski, Eça e Dickens debaixo do braço, que fala com uma dicção informal invejável, nascida das urgências da crônica jornalística diária, e que, donde o espanto, é difícil não apreciar mesmo no ápice de seu cinismo. O conservador está lá, não tenham dúvida, e é rabugento como o cão, mas sabe polir sua rabugice, torná-la espirituosa até ela ficar elíptica e poder passar por bela.
Esse é seu encanto, e o motivo porque torna mais urgente a pergunta de Dunker.
O livro é formado por uma seleção de textos feita pelo próprio Nelson Rodrigues a partir do plantel de crônicas por ele publicadas entre 1967 e 1968 no jornal O Globo, numa coluna que atendia pelo título de “Confissões”. Como nas demais coletâneas de crônicas, Cabra vadia (1970) e O reacionário (1977), nesta encontramos o escritor a debruçar-se sobre assuntos tanto cotidianos quanto momentosos, desde a prosaica reflexão sobre não se usar mais escarradeira ou leque, até um comentário político sobre os eventos de maio de 68 em Paris. Creio ser possível dizer que os textos de O óbvio ululante, pelo teor rememorativo que tem e por sua insistência, constituem um dos grandes testemunhos autobiográficos de Rodrigues.
Como é comum dos textos desse jaez, nascidos da demanda jornalística e sujeitos à sua periodicidade caprichosa, é muito difícil encontrar-lhes fio condutor. Mas é possível enfeixá-los ao redor de alguns tópicos recorrentes (Nelson Rodrigues os chamaria de “suas obsessões”): há o comentário acerca de eventos políticos recentes, tanto nacionais como internacionais; há os textos nostálgicos, que mesclam memórias pessoais do escritor com costumes d’antanho; e há os textos em que se falam sobre eventos corriqueiros da vida do escritor e de seu círculo de amigos. Não é raro que esses tópicos se combinem no interior de um mesmo texto, no qual se começa falando um “causo” da infância de Rodrigues e se termine espinafrando Dom Hélder Câmara; ou que inicia falando da Rússia soviética e tenha como desfecho uma conversa havida entre o autor e o empresário Bloch.
Quantos aos textos de comentário político, que tem as claras marcas autorais de uma coluna jornalística nos moldes em que as conhecemos, é onde vemos o autor se posicionar com relação ao que de novo vinha ocorrendo no mundo pós-guerra e no Brasil pós-golpe. Ali desfila o que ele qualificou como “esquerda festiva”, a fauna política do bar Antonio’s (onde a esquerda brinda seus “pileques ideológicos”, segundo ele), as greves estudantis do Maio de 68, as manifestações de figuras públicas como Dom Hélder Câmara e Alceu Amoroso Lima diante dos episódios então correntes. Pelas referências a figuras públicas facilmente identificáveis, tem o caráter de crônica política mesmo, parecida com o famoso livro de Zuenir Ventura, 1968 – O ano que não terminou, ou aquele outro, menos famoso, de Carlos Heitor Cony, O ato e o fato. Constitui interessante porta de acesso às condições espirituais e atmosféricas do período, ainda que por vezes seja quase preciso montar um croqui do tipo Who’s who para navegar pelas suas afinidades e teia de relações.
Nos textos nostálgicos predominam passagens diversas da vida do escritor, várias delas passadas em Aldeia Campista, o quase mítico município de sua infância. Ali desfilam outras “obsessões” dele, como o sanduíche com ovo, cujo desejo ele nutre desde quando não podia tê-lo; como os primeiros exemplares de canalha que conheceu, prováveis protótipos dos que inventaria mais tarde; como certos costumes cuja prática pode ser associada ao modo de vida da antiga classe média carioca, desde o fraque até o hábito de tirar o chapéu para as grávidas, do significado das tosses até a relação entre pais e filhos.
Por fim, há os textos que falam da vida cotidiana do escritor na época em que escrevia para essa coluna, compondo seu temário desde pequenos fatos da vida de jornalista até conversas e encontros com seus amigos e figuras da cena literária e dramatúrgica da época. Flagra-se ali Nelson Rodrigues deixando a redação de um jornal na madrugada, se enfurecendo com o “copy-desk Flaubert” (que mexe no texto ao invés de se limitar a copiá-lo), jantando com Oto Lara Resende, trombando com Vianinha, enchendo o saco de Antonio Calado etc. Sujeito de opiniões fortes e língua ferina, dono então de uma estatura veneranda no teatro e no jornalismo, o decoro de ofício não o impede de passar em revista o teatro, a literatura, o engajamento político de seu tempo, fornecendo uma chave de leitura muito interessante para aqueles anos curiosamente tão sombrios e tão fecundos.
Retomo meu ponto inicial.
O conservador está todo ali no livro, o “reacionário” não deixa de por cada vírgula e empregar cada superlativo: suas crônicas fedem a nostalgismo por uma época mais tradicional, desancam as esperanças da juventude revolucionária da época, e volvem olhar cético, rabugento mesmo, a praticamente tudo cujo uso não data de três ou quatro décadas atrás. E ainda assim, no fundo da maioria das crônicas, tal qual pérola enterrada no lodo, há uma certa sensibilidade, um talento narrativo, uma poética coloquial, que são estarrecedoras. Possuem, a despeito do esgar de úlcera, da condescendência e de certos silêncios ensurdecedores, seu quê de humanismo. Há ali o suficiente para que mesmo os mais ideologicamente exigentes lhe permitam o qualificativo de “ambíguo”.
Diante da polarização extremada em que vivemos, com todos protegendo suas jugulares à cada declaração, “ambíguo” não é um começo? Considerando o Febeapá que tem sido a atuação governamental desse ano, encontrar um “ambíguo” não seria um bálsamo? Onde estão nossos Nelson Rodrigues?