São muitos os motivos que nos levam aos livros: curiosidade, entretenimento, obrigações profissionais, estudo, tédio. Mas, independentemente da motivação, todo leitor tem um traço em comum: o interesse pela biblioteca alheia. Para olhos treinados, uma estante de livros é um mosaico que permite vislumbrar a história do outro, seus interesses atuais e passados, suas preferências íntimas, os lugares onde viveu ou por onde passou. Por isso, ao visitarmos amigos ou mesmo desconhecidos, nos sentimos à vontade para vasculhar as lombadas de seus livros, tecer comentários e fazer perguntas invasivas. É raro o silêncio entre dois leitores.

Anos atrás um amigo me disse: “Não compramos livros porque gostamos de ler, mas porque gostamos de viver cercados de livros, e isso também é muito bom”. A frase permaneceu comigo em parte porque estou de acordo com ela, mas também por trazer diversas reflexões: qual parcela de nossos livros nós chegamos a ler de fato? Alguma vez compramos livros, embora, no fundo, saibamos que suas páginas permanecerão intocadas? No caso daqueles que têm acesso, por que não utilizamos as bibliotecas públicas ou institucionais?

Muitos de nós, membros do Posfácio, somos críticos em relação ao consumo, mas quando se trata de livros é como se nos déssemos uma “carta branca”. Compramos mesmo sabendo que a pilha da mesa de cabeceira ameaça desabar – literalmente – sobre nós durante o sono. Nosso carrinho de compras em livrarias virtuais pode alcançar o terceiro dígito durante as promoções, embora saibamos que os frutos da liquidação anterior sequer foram organizados em nossas prateleiras. A lista de não lidos e as famílias de traças em nossos armários crescem na mesma proporção que a fatura do cartão de crédito, mas isso não resulta em mais ou melhores leituras.

Durante a última Festa da USP, pedi para a Taize (também colaboradora da casa) comprar um livro que, eu bem sabia, tinha alta probabilidade de jamais ser lido. Ao me dar conta disso, decidi tomar uma atitude radical: não só cancelei a encomenda como também decidi ficar um ano sem comprar novos títulos. Como seria passar 365 dias sem comprar um único livro, vivendo apenas do livro de contos independente que comprei numa feirinha em 2011, de clássicos da antropologia oriundos do saldão de fechamento da Cosac Naify, do romance de 1200 páginas de Thomas Pynchon guardado para ser lido em um dia que, ao que tudo indica, nunca chega? Pretendo descobrir a resposta e contar para vocês.

Não estou sozinho nesta empreitada: A Raquel Toledo, o Arthur Tertuliano e o Daniel Falkemback decidiram me acompanhar. As regras são poucas e simples:

  • Não é permitido comprar livros, em nenhuma situação.
  • Por enquanto, o foco devem ser as obras que já temos em casa, embora empréstimos não sejam vetados.
  • Toda a experiência e eventuais deslizes devem ser relatados aos nossos leitores em postagens quinzenais, sempre no primeiro e no décimo quinto dia do mês, uma mescla de diário de leituras e controle de abstinência.

Se tudo der certo, não teremos nenhum relato de participantes acariciando lombadas com lascívia em livrarias pelo Brasil e pelo mundo. Mas não garantimos nada.

A ideia aqui não é nos submetermos a qualquer tipo de sofrimento, e não temos vocação para mártir. Sabemos o privilégio que significa poder gastar com cultura no Brasil de hoje, e não temos do que reclamar. Na verdade, nossa intenção é a oposta: valorizar esse privilégio ao máximo, buscando compensar os “desperdícios” que cometemos pelo caminho. Não preciso dizer que o projeto é aberto a todos aqueles que desejarem participar, e a caixa de comentários está disponível para outros relatos. Para mim, o projeto já começou: estou abstêmio desde o final de novembro, para evitar uma corrida alucinada às livrarias e a constituição de um estoque contrário à proposta do Adeus às Traças.

Ah sim, é este o nome do projeto. Nada contra as traças – que sejam felizes, longe de nossas casas. Que em 2020 sejamos capazes de encontrá-las em nossas prateleiras, uma por uma, e reconquistar os textos que virariam seu almoço.

Vem com a gente?