Por Rodrigo Tavares (*)

Trecho do romance inédito Ainda que a terra se abra, com lançamento previsto para o mês de abril. No livro, o professor universitário Martín recebe a notícia da morte de seu pai e retorna ao Sul para a partilha da herança. Ali, reencontra-se com o passado, sonhos abandonados e tragédias que insistem em ser lembradas.

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Desde o dia daquele acidente, sempre que Martín entrar em um automóvel, suas mãos ganharão vida própria, será impossível conter os pequenos espasmos. Mesmo que ache que já superou, que não resta nenhum medo, ele não terá paz no banco de um carro.

Tinha oito anos, era seu aniversário e foi com a mãe passar o dia na Cidade. Brincaria na praça de esportes, assistiria à matinê no Avenida. Apesar do frio, o dia estava ensolarado, com a claridade típica de maio, em que o sol parece não emanar nenhum calor, céu sem nuvens, árvores despidas, e o minuano a congelar a ponta dos dedos.

Martín vestia uma japona vermelha, um conjunto de moletom verde e botinas emborrachadas, por causa da geada. Sempre achou sua mãe linda; com aquele riso alto e sem timidez, uma das coisas de que, no futuro, mais sentiria falta. Naquele dia, a mãe vestia botas de couro e a calça de brim desbotada, sua favorita. E ele lembra do segurar daquelas mãos macias, da ansiedade com que conferia o relógio toda hora. Tentava olhar para a mãe, com os raios do sol a ofuscar as vistas, podia enxergar os cabelos soltos, volumosos, e o rosto misterioso escondido pelas sombras.

Nem imaginava que, na estância, preparavam a surpresa. Bibiana recheava os cachorros-quentes, enrolava os negrinhos e branquinhos, arrumava a mesa com os brinquedos de fazendinha. Havia balas de coco, garrafas de Mirinda e Guaraná Amazonas e copos de plástico. Tinha cerveja para os adultos, mas nessas ela não podia mexer. Apenas deixava embaixo da mesa, escondido pelas toalhas, o engradado para os cascos. Enquanto isso, Aramis enchia a camioneta com os colegas de escola. Na cabine de bancos inteiros, iam umas três ou quatro meninas. Os guris se amontoavam na caçamba da D-20, surfando nas estradas de terra, agarrados às grades. Estariam todos escondidos na sala de jantar quando Martín e a mãe chegassem do passeio.

Pelo que depois lembraria, antes de voltar, entraram na Quitutes para comprar uns biscoitinhos e a mãe não deixou que ele tomasse sorvete. O único não daquele dia. Depois disso, as lembranças ficariam perdidas em uma confusão de ausências e silêncios.

Quando tentava recordar, sentia o perfume da mãe, do seu condicionador de cabelos, dos cremes que passava na pele. Se forçasse um pouco mais, lembraria o cheiro das brasas nas lareiras das casas à beira da estrada, o vapor inebriante de algum quentão fervendo, de carne assando nos fornos; podia escutar a freada, as buzinas, o estalo dos vidros quebrando; sentia na boca o gosto amargo das luvas dos paramédicos e, no peito, o frio metálico do estetoscópio. Ainda podia lembrar da vaca que pastava junto ao arame, alheia ao tumulto. Podia ver seus dentes gastos arrancando a grama do chão, e aquela boca mole ruminando a pasta verde. Já a imagem da mãe, daquele corpo ensanguentado e sem vida, dentro do carro esfarelado escoou por algum beco da memória.

O pequeno Martín, em estado de choque, voltou a si apenas ao escutar o barulho da camioneta do pai frear, quando o motor morreu e as portas abriram, rangendo como sempre. Suas mãos tremiam, sangue vertia da testa, pontilhada de cacos de vidro. Lembra-se de ter escutado os passos rápidos de Aramis e, principalmente, o grito de Bibiana, que o assombraria dali para frente. Nas futuras noites de insônia, com a cabeça pulsando por causa da estática daquelas horas mortas, seria esse grito que ele sempre voltaria a escutar.

Não saberia dizer se foi naquele momento que passou a desejar ter morrido no lugar de sua mãe ou se foi apenas com o tempo que esta culpa se apoderou. Uma culpa estranha, é verdade. Mesmo assim, culpa.

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* Rodrigo Tavares é autor de A tropeada, Contos sangrentos, Noite escura e Andarilhos. A ser publicado pela Editora Taverna, Ainda que a terra se abra está previsto para abril de 2020.