Por Luis Felipe Abreu (*)

Nota dos editores: Este artigo é parte do especial em memória de Sérgio Sant’Anna. Ao longo da semana, publicaremos outros textos em homenagem ao autor carioca.

Na madrugada deste domingo, 10 de maio de 2020, morreu o escritor Sérgio Sant’anna.

À devastação desta sentença, parece impossível adicionar qualquer remédio, qualquer aparte. O que dizer em uma situação destas? Mas, ao mesmo, como não dizer nada? É justo esta tensão, que estica ao limite o fio da escrita, que marcou o desenvolvimento da obra de um dos mais singulares autores brasileiros; que era, poderíamos dizer, até a noite passada, o maior escritor brasileiro vivo. Se não há remédio à escrita que não escrever, tomo este momento para ler uma vez mais seu último livro: Anjo noturno, lançado em 2017.

Não se trata de tomar o trabalho derradeiro como espécie de metonímia à toda obra, chave de revelação que abre os segredos de tudo que o precedeu (leitura que, presumo, Sant’anna detestaria). Seria mais o caso de ler nestes textos finais como se imprimem as marcas das inquietações e experimentos que marcaram os cinquenta anos anteriores; ler ali as de sedimentação do pensamento e da poética, onde se depositam fragmentos já estudados; ler, enfim, como a reiteração do seu trabalho literário é ela mesma reflexão sobre a impossibilidade da linguagem de exprimir os significados, impossibilidade que se apresenta menos como interdição do que desafio (leituras que, presumo sem certeza, ele estaria mais afeito).

Pois Anjo noturno é de todo um livro de Sérgio Sant’Anna. Abre suas portas ao leitor com Augusta, representante de seus tantos contos-ensaios sobre o olhar, nesta narrativa que envolve um casal fortuito e a fascinação que sofrem diante de um quadro herdado, o retrato de Augusta. O pintor foi o amante da jovem, que abandonado por ela, se suicida; não sem antes deixar no apartamento o quadro, ferido à faca, apunhalado de desgosto.

Esta imagem, do artista que se deixa levar pela representação e a machuca, como se assim pudesse machucar a mulher representada, é signitiva das inquietações de Sant’anna diante da arte – centrais aos romances Um crime delicado e O livro de Praga, para ficarmos em dois insuficientes exemplos. A arte é forçosamente artificial, uma construção feita com zelo ou frenesi por uma mão humana; mas haveria algo nela a transcender essa condição ficciosa? Ou, ainda, seria o avesso?: haveria na ficção um quê de vida que é muito mais vibrante do que a vida no dito dia a dia. Como confessa a personagem-herdeira do retrato, ao ser descoberta como escritora: “Escrevo para mim mesma. Para dar uma realidade maior a tudo o que existe e se passa em torno de mim”. Em lógica similar, entendemos que não fere-se o quadro de Augusta pois já era impossível ferir a Augusta mesma; fere-se o quadro pois é ali que se pode arruiná-la do modo mais fatal.

Essa concepção ligaria a vida imóvel desta pintura à vida subitamente revoltosa dos personagens de Senhorita Simpson, novela presente no livro homônimo, em que os frequentadores de um curso de inglês tem o cotidiano transfigurado pelas relações com a professora; quando passam a, sutilmente e sem saber, mimetizar os personagens do exercícios nos livros didáticos estudados.

De volta à Anjo noturno, lemos outra cena que põe no palco tais provocações. Em Talk Show, um velho escritor amargurado participa de um programa de televisão, sendo entrevistado pela figura burlesca de Edwina, similar à Hebe Camargo e afins. É o protocolo normal dos encontros do tipo, em uma conversa que se quer íntima (mesmo que transmitida de um estúdio), dedicada a divulgar detalhes particulares dos participantes. Isto até que o entrevistado da vez se deixa fixar pela figura de Edwina, por um seio que se dá a ver e o excita progressivamente, até a perda do controle. A libido fere de morte a artificialidade da entrevista, expõe a futilidade de seus ritos. É símile ao papel que o erotismo frequentemente desempenhou nos seus textos, sempre dele encharcados; O sexo não é uma coisa tão natural nomeia um de seus mais célebres contos, em que uma relação é descrita em close, tornando grotescos seus elementos – ainda assim excitantes, ou talvez por isso mesmo excitantes. O sexo ao mesmo tempo como elemento de proximidade e distanciamento, de comunhão e de ojeriza, como insígnia da anormalidade de todas as coisas.

Outro traço que se infiltra pelas narrativas deste livro final é um veio de memorialismo. É marcante nos contos A rua e a casa, que retoma a psicogeografia do Rio de Janeiro da infância; Amigos, revisão e reconstrução de amizades antigas; e sobretudo Mãe, retomada emocional das relações familiares. Este aspecto revisionista, fruto de uma percepção literária da própria velhice, vinha invadindo sua produção recente, marcando Páginas sem glória, O homem-mulher e O conto zero. Seu último texto divulgado, o conto inédito Das memórias de uma trave de futebol em 1955, publicado na Folha de S. Paulo em 26 de abril, é representante fiel desta tendência, ao rememorar os treinos do Fluminense assistidos quando criança. Não se trata, porém, de mera autobiografia: longe de produzir um discurso único sobre a própria existência, Sant’Anna multiplica a própria vida em tantas versões quanto possíveis – quanto escrevíveis. Em Das memórias… a primeira pessoa não é da criança, mas das traves da goleira assistida. Em Homem-mulher escreve as memórias de uma história de amor no conto Eles dois; em O conto zero reescreve a mesma história por outro ângulo em Flores brancas, invertendo o tom sentimental em soturno, como uma cópia em negativo. 

Essa estratégia, de uma autopolifonia, ecoa até O conto fracassado, que fecha o Anjo noturno, uma sucessão de diversas cenas, como que escritas em tempo real, parágrafos que iniciam histórias e não as encerram por objeções do contista-narrador; várias delas possuem tintas autobiográficas, borradas pelas sucessão frenética e pela própria incompletude. Afinal e ao final, não interessa ao contista a memória em si, mas a possibilidade de construir a partir dela; e que essa construção seja inevitavelmente fracassada, pois a página em branco é o mais instável dos materiais, tanto melhor, pois abre o jogo à prorrogação. “O conto fracassado era a escrita do declínio de um autor em crise, equilibrando-se num fio estendido sobre a vala comum, mas às vezes ele se surpreendendo a admitir, numa espécie de exaltação: apego-me a este fracasso e nele me reconheço”, é o parágrafo que encerra o livro.

Sérgio se foi, e a sua ida causada pela COVID-19 se amarra à escrita da própria história do país, aquela que ele abordou obliquamente por toda sua escrita, se permitindo reflexões mais diretas em livros como Amazona e o tão bem entitulado (e tão mais triste por isto) A tragédia brasileira. Na sua vida privada era já um isolado, nos diziam tantas entrevistas; nos seus textos há um recolhimento e uma solidão progressivos, sobretudo a partir de O voo da madrugada. Penso aqui nisto como uma espécie de responsabilidade: sua escrita nos trazia essa aguda compreensão dos impactos concretos da fala, na inevitável consequência do texto no mundo (na ausência da fronteira entre estes, na verdade). Talvez gostasse de se calar, não como excentricidade ou misantropia, por cuidado.

“Também estou escrevendo pouco. Fico mais é pensando, deixando as ideias entrarem e saírem da cabeça. Mas vou fazendo, muito devagar, um livro de contos. Textos que discutem o dizer e o não dizer. Um livro que busca algo assim como o silêncio.”, escreveu já em 1983, em O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro. É neste conto, talvez o ápice de sua produção, que nos conta da recusa de João Gilberto em apresentar sua obra como a mais perfeita apresentação de João Gilberto da sua obra. 

Desaparecer é um ato artístico, nos informa; sobretudo pois nunca se desaparece de todo. No mínimo, lega-se o próprio ato da desaparição. Como uma réstia de fumaça, no lugar do mágico que sumiu. Sérgio sumiu: fez muita arte antes, o que garante que permanece. Ainda: permanece sobretudo na arte – nos Livros Escritos por Sérgio Sant’Anna no Rio de Janeiro, poderia-se dizer –,  que é a forma mais inabalável do permanecer. E a ele, a mais fiel. 

Mal resistindo à tentação afirmada no início, de tomar uma parte da obra pelo todo, de ler messianicamente, penso que o caso é de terminar esta breve memória – inventada também, à sua maneira – com a lembrança de outro texto, o conto Cenários. A seu modo, um manifesto de toda sua produção, com a escrita sucessiva de imagens poéticas que se esfumam ao final de cada parágrafo com a afirmação de “Não, não é bem isso”: o contista não se contenta em escrever meras histórias – mas sim, na tentativa de escrevê-las, mostrar que as engrenagens são mais fascinantes que o visor dos relógios. Que a vida só existe equilibrada sobre um fio de morte, e só interessa naqueles momentos em que, por um instante, vacila sobre a não-vida: sobre o falso, o artificioso, o ficcional. O mais perene, pois infinitamente maleável.

A seu modo, gostaria eu não ter de escrever este texto. Gostaria apenas de escrever que:

“Na madrugada deste domingo, 10 de maio de 2020, morreu o escritor Sérgio Sant’Anna. Não, não é bem isso”.


(*) Luis Felipe Abreu é doutorando em Comunicação pela UFRGS. Estuda relações entre literatura, escrita e comunicação.