Carlo Ginzburg é um dos nomes mais conhecidos da atualidade tanto na História quanto na crítica literária. Apesar de suas incursões no terreno da crítica literária, na qual demonstra uma erudição bastante distinta e rara nos dias de hoje, ele é conhecido principalmente por conta da criação e desenvolvimento da chamada “micro-história”. Ginzburg, inclusive, tem encontrado bastante aceitação, tendo sido bastante discutido e difundido em paragens brasileiras.

Nenhuma ilha é uma ilha – Quatro visões da literatura Inglesa é uma reunião de quatro ensaios do historiador italiano, desenvolvidas quando das pesquisas do autor em relação a temas que não se referiam diretamente ao que ele expõe no livro. Como ele mesmo diz na introdução, ele é um grande cultivador do gênero ensaístico, e o alia aqui às suas discussões na escala “micro-histórica”, procurando, como indica o subtítulo, apresentar algumas evidências (encontradas fortuitamente) que atestam o caráter não absolutamente insular com que se concebe a literatura inglesa.

Para dar corpo e sustentação a sua hipótese não-insular da literatura inglesa, Ginzburg analisa no primeiro ensaio (O velho e o novo mundo vistos da Utopia) a célebre Utopia, de Thomas More. Para tanto, Ginzburg se vale da parceria de More e Erasmo de Rotterdam (autor do também célebre Elogio da loucura), mas também das raízes da obra, que segundo ele, repousam nas obras de Luciano de Samósata, autor cujas obras More e Erasmo traduziram e admiraram. O estilo de humor refinado e de sátira das obras de Luciano se instilaram na escrita de More e foram rastreados por Ginzburg.

O segundo ensaio (Identidade como alteridade) encontra suas bases em diversos textos escritos a respeito da poesia inglesa, mais especificamente sobre as rimas características da poesia elisabetana. Os textos mostram como a alteridade nascente na aurora do imperialismo ajudou a moldar não só a poesia e as rimas inglesas como também as identidades desse contato com o outro. A pretensa insularidade cai por terra na medida em que ela própria se dá na dialética com o não-inglês, ou seja, por mais que se negue, sempre se nega em relação a algo, e, no caso dos escritos analisados por Ginzburg, também balizados pelos ensaios de Montaigne.

O pároco Laurence Sterne e o seu famoso A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy são colocadas no terceiro ensaio (Em busca das origens) diante do que Ginzburg enxerga como sua referência: o dicionário do filósofo ateu francês Pierre Bayle. A aproximação se dá apesar das concepções opostas dos dois autores, e tangenciam-se com intensidade quando se trata de basear seus escritos em digressões.

O livro de Sterne é basicamente um conjunto de digressões com pouca trama propriamente dita, sendo esse, inclusive, o motivo pelo qual a obra veio a se tornar um clássico. O estilo de abusar nas abstrações reflexivas se aproxima ao estilo usado por Bayle em seu dicionário, que, ao que consta em registros, ficou emprestado da biblioteca para Sterne durante dez meses. Bordejar o tema central é uma característica recorrente nos dois autores, que chegam a ter notas nas próprias notas e folhas com mais texto nas notas de rodapé do que no corpo da página mesmo.

No último ensaio (Tusitala e seu leitor polonês) é analisada a relação constituída entre uma história de Robert Louis Stevenson (chamado Tusitala, que significa “aquele que conta histórias”), intitulada O diabo na garrafa com a obra do etnólogo anglo-polonês Malinowski. A história de Stevenson se constitui no seguinte: um homem oferece a outro uma garrafa que contém um demônio, quem possuir essa garrafa pode ter um desejo concedido pelo demônio, desde que não permaneça com a garrafa e que a passe adiante tendo prejuízo. Acontece, pois, que chegará um momento em que o receptor da garrafa será condenado por conta de não conseguir vendê-la sem prejuízo.

Essa história foi inspirada em uma lenda que Stevenson ouviu de tribos do Pacífico Sul, tribo essa cujas peculiaridades de organização social, ritos, cultura e modo de vida inspiraram as pesquisas do etnólogo polonês. Mais uma vez é atestado o caráter de comunhão parcial da literatura inglesa com produções não-inglesas ou pensamentos não necessariamente provenientes dentro dos limites geográficos da ilha.

No que tange a desconstruir a insularidade inglesa, Ginzburg consegue embasar-se com solidez; mas no que tange a entender as peculiaridades da influência e os “mecanismos” de constituição das literaturas, Ginzburg acaba ficando mais restrito. Em tempo, explico-me: tal qual anuncia, Ginzburg se voltou em Nenhuma ilha é uma ilha a desconstruir o pretenso isolamento literário da Inglaterra, logo, suas preocupações incidiram na sustentação dessa hipótese, algo que ele cumpre com elegante êxito. O que me refiro quando falo de “restrição” é o fato de que ele, ao penetrar no micro-universo das influências, pouco retorna ao macro para avaliar as dimensões dessa influência. É como se a chama se iniciasse no micro e se consumasse por lá mesmo.

Não há como negar a concretude desses ensaios, inclusive vale reconhecer o conhecimento profundo do autor acerca da literatura clássica antiga e do séculos XVI e XVII, pois rastrear tais influências é um exercício que exige (como ele ressalta no seu método do “paradigma indiciário”) “golpe de vista” e meticulosidade além de, é claro, tradição de estudo de longa data. Um livro intrigante que através de “estudos de caso” ajuda a compreender melhor como funcionam os métodos e as concepções ginzburguianas e os próprios mecanismos constitutivos da literatura.