Por Tobias Carvalho (*)

Nota dos editores: Este texto é parte do especial em memória de Sérgio Sant’Anna. Ao longo da semana, publicaremos todos os dias homenagens ao autor carioca.

Tem algo sinistro sobre escrever. Talvez seja isso de deixar uma marca impressa e imutável. O autor de uma determinada época fica para sempre congelado: uma maneira de não morrer nunca.

Frequentemente comparado a Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, os outros dois grandes contistas de sua geração, Sérgio Sant’Anna vinha tomando a dianteira nos últimos anos. Sua obra ganhou outra voltagem desde O voo da madrugada, de 2003, até Anjo noturno, de 2017. Dos três autores, ele era o único cujo prestígio se devia tanto à produção do passado quanto à do presente.

Sant’Anna vinha escrevendo com qualidade e em quantidade. Preparava novos projetos e vinha publicando contos avulsos na internet. Se ele já deslocava a fronteira entre gêneros literários havia décadas, em sua última trinca de livros (O homem-mulher, O conto zero e Anjo noturno), os contos tinham um tom forte de memória. Em “A mãe” e “Amigos”, ambos de Anjo noturno, o leitor se depara com o ponto de vista de um narrador que, já no fim da vida, olha para o passado, talvez para que as histórias não se percam.

É claro que muitas histórias vão se perder com o falecimento de Sérgio Sant’Anna. Ainda assim, ele deixa uma obra eterna, de dar inveja ao panteão literário de qualquer país.

Acho estranho quando alguém diz que nunca mais foi o mesmo depois que leu determinado livro. Hoje penso que aos poucos o acúmulo de leituras nos muda, mas tenho achado cada vez mais difícil encontrar um livro capaz de alterar minha trajetória. Quando li O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, no entanto, encontrei.

A interlocução da escrita de Sant’Anna com o pós-modernismo europeu e estadunidense fazia ele parecer um intruso no Brasil. E no entanto sua escrita também era diferente da dos gringos. Ele sabia usar a metaficção de um modo único: era artificioso até as últimas consequências sem nunca soar artificial.

O conto-título de O concerto de João Gilberto é um desses momentos definitivos, talvez o maior de uma carreira brilhante. Não dá para imitar com o mesmo efeito sua construção em subtítulos, apresentando um conto ao mesmo tempo em que ele é escrito, enquanto o autor chama atenção para a impostura que é escrever sem revelar os artifícios.

Eu estava escrevendo um romance quando li esse conto. Depois da leitura, resolvi que meu romance não podia continuar pelo mesmo caminho. Resolvi radicalizar a experimentação. Depois descobri que não sou Sérgio Sant’Anna e joguei tudo fora.

Tudo bem. Acredito que foi um aprendizado que, no fim das contas, me economizou tempo. A ficção de Sérgio Sant’Anna economiza tempo: joga luz por paralaxe, busca uma certa verdade por eliminação, tem uma visão de mundo única, mostra espelhos para que o leitor consiga se encontrar. Não é uma literatura em que tudo se fecha; pelo contrário: a escrita de Sérgio Sant’Anna é potente tanto quanto é fraturada e imperfeita.

(Revirando agora meus livros, encontrei um exemplar de O livro de Praga que comprei em uma feira, na seção da Companhia das Letras de livros com defeitos de fabricação. Na capa, há um adesivo em que se lê “livro imperfeito — grandes obras, pequenas imperfeições,” o que, em se tratando de Sérgio Sant’Anna, torna tudo ironicamente perfeito.)

E Sérgio Sant’Anna seguiu com esse projeto até o fim.

“Flores Brancas”, presente em O conto zero, é uma dessas narrativas que contam uma vida inteira. No final, o narrador, mais velho, lê um livro de Knut Hamsun sobre um homem solitário que passa o inverno em uma cabana. Depois de saber da morte de Sérgio Sant’Anna, a lembrança do fim do conto me deixou um pouco menos angustiado: “Há um trecho do livro [de Hamsun] que nunca mais esquecerei. O personagem, após concluído o seu serviço, pergunta a si mesmo: ‘Era aqui que eu queria chegar?’ E ele mesmo responde: ‘Era.’”

Claro que isso é só ficção. Mas afinal, o que não é?


(*) Tobias Carvalho nasceu em Porto Alegre em 1995. Seu livro de estreia, As coisas, foi vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2018.