Quando da láurea do escritor japonês Yasunari Kawabata com o Nobel de Literatura em 1968, a Academia Sueca justificou sua escolha da seguinte maneira: “por sua maestria narrativa, que com grande sensibilidade expressa a essência da mente japonesa”. A comissão encarregada de fazer a tão aguardada escolha certamente não ignorava uma obra de Kawabata escrita nos já longínquos anos 30, na qual o escritor, um tanto diferentemente de seus temas usuais, desceu às ruas, becos e templos de Asakusa para escrever sobre os vagabundos, boêmios, cortesãs e demais sujeitos que lá viviam.

Para a Academia Sueca, a vida como ela era em Asakusa representava também, a seu modo, a essência da mente japonesa, e creio que o mesmo possa ser dito acerca da visão de Kawabata, pois aquele mundo era humano e interessante o suficiente para figurar em sua obra, e com uma caracterização bastante entusiasta, é preciso dizer.

O livro do qual se fala aqui é A gangue escarlate de Asakusa, um romance formado pelas histórias que Kawabata publicou num jornal de Tóquio entre 1929 e 1930, como uma espécie de crônica folhetinesca: meio jornalismo, meio ficção. Os textos retratam situações cotidianas do bairro em questão, seguindo no encalço dos tipos humanos que o habitam para perceber como eles ganham a vida, o que fazem, quais são seus dilemas, sofrimentos, alegrias. Enfim, trata-se de textos que procuram retratar a vida em Asakusa.

A escolha desse bairro certamente não é aleatória. Asakusa foi um dos grandes palcos onde as tradições milenares do Japão foram obrigadas a conviver e se justapor, com maior ou menor harmonia, a elementos ocidentais, tipicamente modernos. Era um lugar de movimento e ação, empolgante e luminoso, como o seguinte trecho permite perceber:

Asakusa é Asakusa de milhões de pessoas. Em Asakusa, tudo está jogado de forma crua. Diversos desejos humanos dançam desnudos. Todas as classes, todas as raças, numa mistura, formam o fluxo de um grande rio. Um fluxo profundo e desconhecido, que escoa sem fim, de manhã à noite. Asakusa vive. (p. 43)

O escritor, cônscio das singulares possibilidades da exploração daquele ambiente vibrante, perambulou por Asakusa valendo-se de uma proximidade antropológica em relação àquela realidade para que pudesse perceber seus nuances, suas peculiaridades e as dinâmicas da vida que grassava naqueles rincões. E Kawabata não nos decepciona, pois é dono de uma sensibilidade muito aguçada, cadenciada pela paciência de um bom observador.

Ainda que o objetivo dos textos seja uma exploração mais ou menos jornalística da vida no bairro, Kawabata utilizou-se da ficção e de técnicas narrativas típicas da literatura para levar a cabo sua tarefa. O escritor se insinua no texto, não tendo medo de colocar a palavra ‘eu’ e nem de conjugar vários verbos na primeira pessoa do singular, indicando que os olhos que guiam a história são mesmo os seus. O resultado é que A gangue escarlate de Asakusa é um livro que mescla uma agudeza jornalística no olhar e uma delicadeza literária no escrever.

Joshua Cohen, crítico literário inglês, elaborou certa feita uma lista reunindo o que ele chamou de “os Ulysses do mundo”, isto é, livros que traziam em seu seio técnicas e olhares de inspiração modernista que se assemelhavam, portanto, ao famoso romance de James Joyce. O Ulysses japonês é justamente o livro de Kawabata do qual falamos. E não é difícil perceber por quê.

O grupo literário ao qual Kawabata pertencia foi responsável pela publicação da revista Bungei Jidai (que pode ser traduzido como “Era literária”), que ficou conhecida por carregar a influência do movimento modernista ocidental. O próprio Kawabata colocou seu nome entre os grandes da literatura universal por trazer técnicas tidas como modernistas para falar do Japão de feições tradicionais, fosse através da natureza, fosse através dos temas etéreos, ou através da filosofia milenar, vivificada, então, nos dilemas da modernidade.

Ponderando sobre a obra nesse sentido é interessante perceber como Asakusa mantém, de um lado, um templo tão tradicional como o de Kannon ou uma paisagem tão pacífica como a do lago Hyotan, convivendo com o “(…) erotismo, o nonsense, a velocidade, o humor caricatural dos acontecimento correntes, as canções de jazz, as pernas das mulheres…” (p. 44)

É o choque de mundos tão diferentes que atrai Kawabata, a possibilidade de captar a beleza – não raro melancólica e de grande potencial literário – presente nas complexas interações entre elementos tão díspares quanto o são mulheres de quimonos tradicionais recortadas contra um céu singrado por um dirigível, ou, como nos mostra Kawabata, “(…) na ópera do Teatro Teikyo (…) o príncipe Hikaru Genji e o nobre Narihira dançando jazz entre outros personagens do século X” (pp. 113-114). A gangue escarlate de Asakusa é um livro com imagens fortes, realçadas essas pela profusão de cores, sons, texturas, coisas, gentes e eventos, todos conjugados para formar aquela paisagem entrecortada de milhares de elementos como o é a paisagem moderna.

Sob um certo ponto de vista, A gangue escarlate de Asakusa retrata uma versão japonesa da famosa Era do Jazz norte-americana, que ficou conhecida pelas obras de seu mais emérito cronista, F. Scott Fitzgerald. Ainda que em Asakusa não circulem magnatas e sim sujeitos das classes mais humildes, a boêmia é uma constante assim como o espírito festivo, as bebidas e aquele conjunto de espetáculos meio vaudeville meio burlescos. Uma das diferenças, no entanto, que torna peculiar a Era do Jazz japonesa é o fato de que seu espírito folgazão convive lado a lado com a incerta vida que levam os sujeitos de Asakusa, já que eles não possuíam o conforto material dos enriquecidos americanos.

Num tal ambiente, não é difícil imaginar um escritor perdendo a mão ao superestimar o espetáculo de uma forma elegíaca e romântica, ou ao focar-se somente no drama que é a pobreza de alguns contra um pano de fundo de fartura. Kawabata, no entanto, soube equilibrar as duas preocupações, sendo leniente com os vagabundos e boêmios – como que a endereçar a eles uma marota piscadela de solidariedade –, mas não deixando de mostrar as contradições e desigualdades que seguem no encalço da modernidade.