Do editor Felippe Cordeiro:

Nas rodas de conversas literárias, virtuais ou presenciais, às vezes surge o assunto dos melhores livros de todos os tempos, facilmente inclinado ao gosto pessoal de cada pessoa. Várias polêmicas surgem, da posição de cada obra até a justificativa.

Com a equipe do Posfácio não é diferente. Entre indicações e rejeições, tentamos convencer nossos camaradas a lerem o que gostamos. Em 2012, ainda obcecado por Graça infinita, recebi a provocação de que os livros não precisam ser extensos, complexos ou de vanguarda para impactarem, tampouco necessitam de luz em todas as listas repetitivas que adoram os mesmos autores consagrados de sempre. Como exemplo, me foi indicado Pedro Páramo.

Lido em uma sentada no calor de janeiro – Juan Rulfo, o autor, cortou o livro a exaustão, é um romance curto mas intenso –, eu o coloquei entre os meus livros favoritos, um dos mais importantes que meu parco conhecimento de literatura alcança, e passei a indicá-lo para todas as pessoas. “Pedro Páramo é incrível” era como eu classificava no começo. “Pedro Páramo é literatura, o resto é fanfic”, provoquei mais à frente após inúmeras ignoradas dos meus companheiros.

Eis que no meio do caos silencioso de uma quarentena, resultante de uma pandemia, não aguentei mais as provocações. “Meu Deus, o Pips fala desse livro há 7 anos e ninguém nunca leu”, disse Raquel Toledo e, dessa simples sentença, prometi a todos os presentes (virtualmente) que mandaria um exemplar para cada um. A resenha original, no calor da minha recém-terminada leitura, pode ser conferida aqui. O resultado da leitura coletiva você pode ver abaixo.

Seria Pedro Páramo um delírio deste editor ou um livrinho de poucas páginas que as pessoas deixam para ler depois e nunca leem? Com vocês, os membros da equipe, os colaboradores e suas impressões.


Daniel Falkemback

Quando comecei a ler Pedro Páramo, do Juan Rulfo, logo entendi por que o Pips indicou esse livro para a gente. Há pelo menos uns sete anos ouço ele me falando que é um romance incrível, um dos favoritos dele, que mudou toda a literatura. Nas primeiras vezes, confesso que pensei ser uma empolgação temporária, aquela sensação de satisfação absurda que fica depois de ler um livro muito bom. Mas ele continuou me dizendo isso por anos e anos. Daí comecei a achar que realmente poderia gostar do livro tanto quanto ele gostou, afinal ele também me recomendou A invenção de Morel, do Adolfo Bioy Casares, que li e adorei. Até hoje, essa foi com certeza uma das leituras que mais me impactou.

Como disse, logo que abri Pedro Páramo, a razão para o Pips ter se apaixonado pelo romance me veio. Não sei explicar bem, mas tem a cara dele mesmo. Mas será que tinha a minha cara também? Nas páginas seguintes, ainda estava em dúvida. Não me parecia ser nenhum A invenção de Morel. Depois que vi que, bem, boa parte das personagens estava morta e que tudo começava a ficar cada vez mais doido, daí, sim, aceitei que era um livro para se dar toda a atenção possível. Mas calma: não é um livro de zumbis (ou de corpos secos, para usar o termo de um lançamento recente brasileiro). É um livro de vidas dedicadas à morte.

Quando Juan Preciado vai a Comala, povoado de origem de sua mãe recém-falecida, só encontra lá o vazio, o nada. Mas ainda resta a memória de quando havia vida lá. É ela que guia Juan por todos os acontecimentos em volta de seu pretenso pai, Pedro Páramo, e que nos conta como tudo morreu com ele. “Tenho memória da haver visto algo assim como nuvens espumosas fazendo redemoinhos sobre a minha cabeça e depois enxaguar-me com aquela espuma e me perder em sua nuvarada. Foi a última coisa que vi”, conta. Quem conta? Em Pedro Páramo, as vozes parecem se confundir a todo tempo. Às vezes, quando nos fiamos à visão de uma personagem, logo a narração troca de mãos, e demoramos para entender de quem são as mãos. O tempo, ele também é confuso. Os vários momentos do passado e o presente se misturam, ou melhor, eles se combinam, de modo que o que resta é um epicentro. Não importa muito quando ou como as coisas aconteceram. O que fica claro é que tudo gira em volta de Pedro Páramo, o motor da destruição de tudo.

Para quem leu A invenção de Morel, as relações entre os dois romances não param de aparecer ao longo da leitura. Também dá para fazer relações com a tradição do realismo mágico latino-americano, com a história do México (em especial, a Revolução Mexicana), com o regionalismo presente em tantas narrativas do continente americano. Mesmo assim, arriscaria dizer que Pedro Páramo é, de fato, um livro bem especial. Escutem o Pips e leiam Pedro Páramo.


Diana Passy

No dia 9 de abril, chegou aqui em casa uma caixa que peguei com nojinho — não por causa de possíveis vírus, mas por causa do logo de sorriso que demarcava a loja do meu nêmesis.

O conteúdo, entretanto, me deixou feliz: o livro favorito de um amigo querido. Eu acredito muito na capacidade dos livros (e das artes em geral) de unir pessoas, e passar algumas horas nessa experiência coletiva me animou.

Como o livro é curtinho, decidi lê-lo inteiro num feriado. Tive um pouco de dificuldade com a falta de demarcação do narrador de cada parte, mas entendi o valor da prosa seca do autor. É uma história bem contada, por mais que pessoalmente não tenha me cativado.

(Eu não tenho mais necessidade, por exemplo, de histórias que tratam de estupros e violências contra mulheres de uma forma tão blasé. Não é que eu queira fingir que não acontece [eu sei que acontece, e que faz sentido no contexto da história], ou que eu só queira ler histórias felizes. É só que eu, Diana, sabendo que existem mais livros bons no mundo do que serei capaz de ler na minha vida inteira, prefiro voltar minha atenção para outros tipos de histórias.)

Eu não sei se o Pips se tocou de que estava mandando os amigos lerem uma história onde todo mundo morre… no meio de uma pandemia… mas ok? O importante é que passar essas horas imersa num livro de que meu amigo gosta tanto é o mais próximo que terei de um abraço por um bom tempo.

(E, para retribuir o gesto, mandei pra ele meu livro favorito também: Tudo o que nunca contei, da Celeste Ng. Agora é sua vez, Pips.)


Bruno Mattos

Comecei Pedro Páramo com a culpa que me acomete quando leio clássicos ainda não lidos de línguas das quais traduzo – livros que eu já deveria ter lido – e o terminei com receio de ter entendido menos do que deveria ter entendido. Não me lembro de algum dia ter lido uma novela ao mesmo tempo tão concisa e tão repleta de segredos, com uma bagunça tão deliberada e detalhada, tão, enfim, convidativa ao estudo e à releitura.

Mas para mim não foi bem isso o que se destacou no livro.

Destacou-se a impressão de que, em Comala, as pessoas não gozam de uma existência autônoma, apenas reproduzem a sina de suas gerações anteriores em uma sociedade de estamentos rígidos, apartada do mundo, na qual tudo se repete ad aeternum. É uma existência autofágica, alheia ao mundo externo, onde se vive em uma espécie de linha temporal paralela. Essa bolha só é rompida por um um fato externo (a guerra civil mexicana), e mesmo perante ele os moradores parecem resistir a esse “outro tempo” que ameaça engoli-los, buscando refúgio em um cotidiano que transcende até mesmo sua existência terrena. No entanto, suas vozes vão perdendo força, como os sulcos de um disco que se desgastam devido à repetição, até se tornarem um eco distante, confuso, quase imperceptível. É a partir desses ecos que o leitor precisa remontar suas histórias para extrair algum sentido.

Não é por acaso que as comparações com A invenção de Morel vêm à tona com tanta espontaneidade. Essa semelhança, contudo, pode ser um tanto desoladora: a repetição na novela de Bioy, afinal, é uma criação artificial, a reprodução eterna de diálogos roteirizados e de gestos calculados. No livro de Rulfo, são os resquícios de uma vida vivida que acabam reduzidos a um conjunto semelhante de repetições mecanizadas. Ao final, o que resta de uma vida? Apenas episódios esparsos relembrados com cada vez menor clareza, à espera de seu desaparecimento definitivo?

No entanto, não saí do livro com uma leitura tão pessimista. Mais do que apontar para o caráter vão das vidas ali retratadas, Rulfo destaca a capacidade que as narrativas têm de destacar essas vidas, encaixando-as em um mosaico que eleva seu sentido – um processo que, um tanto aleatoriamente, me lembra do que Karl Ove Knausgård faz em sua série Minha luta, embora lá parta de uma única vida (a dele próprio). Em meio à banalidade das vidas em Comala, emerge uma exaltação não só da literatura, mas também da experiência humana que ela é capaz de exaltar. Em tempos de pandemia, é muito reconfortante encontrar esse lampejo de serenidade e resignação em meio a um caldo de miséria.


Arthur Tertuliano

Em tempos de quarentena, não tem problema não ter portaria: sempre estou em casa para receber as encomendas. No dia 9 de abril, estava no meio de uma reunião quando o moço da Amazon apareceu aqui em casa. Lembrei logo de Meu ano de descanso e relaxamento e pensei que tinha feito compras sonâmbulo. Ao abrir, veio o sorriso: realmente o Pips tinha mandado seu livro favorito para todo mundo. Fui o primeiro a postar no grupo do zap o recebidinho.

No feriado de Tiradentes, comecei a ler e fiquei surpreso com o quanto ele me prendeu. Tinha tudo a ver com o meu momento, com o que tinha sido discutido na oficina literária que frequento, com o tom que eu buscava no meu romance. Paralelamente, veio à cabeça o quanto essa novela teria inspirado A invenção de Morel, Como água para chocolate e Cem anos de solidão, para ficar em três títulos.  

Isso durou até a página 80, mais ou menos. Justamente quando o livro ficou menos Morel e mais Cem anos, ficou confuso demais para mim. A história começa com o narrador em busca do pai, Pedro Páramo, e vai se tornando a narrativa de uma cidade, Comala. O dilema familiar e pessoal me interessou muito e, à medida que o narrador vira um narrador e vai sumindo, eu fui ligando menos para a história. Culpo a dispersão de pontos de vista e a não linearidade, aliadas à concisão de um livro que foi tão cortado. Mais para o finzinho, eu sequer conseguia entender o que estava acontecendo, de tão pouco que me importava com o que diziam aqueles personagens.

No final das contas, entendo a importância da obra. Deve ter sido disruptiva o suficiente para que tantos tenham se inspirado nela, tenham lido e relido até entender suas entrelinhas e elipses. Parece até um manual, um resuminho de ideias a serem desenvolvidas por aventureiros.

É massa que Comala tenha inspirado a Macondo do Gabo, mas fica a lição: nem sempre a gente precisa ir atrás das inspirações dos nossos autores favoritos. Shakespeare bebeu de inúmeras fontes, mas suas peças e sonetos são os drinks que me bastam. 

É isso: não gostei, mas entendo a importância. E pelo menos é curtinho.


Simone Vollbrecht

Pedro Páramo começou fácil e leve. O texto é delicioso e poético, ilustrativo, envolvente. Mas, mesmo com menos de 100 páginas, se tornou um livro complicadíssimo de chegar ao fim.

A premissa é simples de ser compreendida em poucas palavras: a mãe, em seu leito de morte, ordena ao filho que volte à terra de origem e exija de Pedro Páramo, o pai que nunca conheceu, tudo o que esse lhes negou em vida, história essa que ressoa em muito mais pessoas que gostaríamos de admitir. Todos temos um ponto importante da nossa vida que nos foi negado, ainda que não tenha sido um pai, uma terra ou um reconhecimento, e isso molda a vida de cada um de formas diversas.

A complicação aparece do meio para o fim do livro. Quem morre não percebe que morreu; permanecem todos distraídos no limbo que é a cidade de Pedro, repetindo as rotinas, dores e arrependimentos da vida. A mãe que não foi mãe, um provável irmão, o padre, todos que ali interagiram e tantos outros continuam presos e confusos em uma tortura sem previsão de fim.

Não sei quantas vezes reabri o livro na mesma parte, na interação com Dorotea, reli o parágrafo e me perdi. Tal qual os presos na cidade após a morte. Passei duas semanas repetindo essa rotina sem sair do mesmo par de páginas, no meu próprio limbo literário durante a pandemia.

Em algum momento, escapei de Comala, transcendi esse trecho. O livro acabou. Pouco lembro da metade final, seja pelo sentimento de estar assoberbada com a vida aqui fora, seja pela névoa que cobre tudo aquilo que fica no limbo. O resultado é sublime.