Embora o século XX possua uma série de características únicas, elementos importantes de sua gênese encontram-se no século XIX. Se determinados processos históricos, tecnologias, projetos de sociedade, ideologias e classes se tornaram tão poderosas – especialmente após a Primeira Guerra Mundial –, grande parte de seu potencial encontrava-se incrustado – quiçá incubado – no período investigado pelo historiador Peter Gay no livro O século de Schnitzler, isto é, de 1815 a 1914.
O legado do governo napoleônico no século XIX e as chagas da Primeira Guerra Mundial são referências importantes para se pensar a formação da cultura de classe média, pois são pontos históricos que evidenciam o desenvolvimento, consolidação e declínio de uma civilização, a civilização liberal, com todos os seus valores, visões de mundo, organização do poder, dinâmicas sociais, ideologias, gerência do trabalho etc. Como se fala, majoritariamente, do século XIX, é forçoso reconhecer o papel essencial desempenhado pela burguesia nesse ínterim: após terem se rompido as amarras feudais do Antigo Regime através da Revolução Francesa, a senda histórica trilhada pela burguesia fora em grande parte desobstruída, embora não totalmente, afinal, a década revolucionária colocara outros personagens e ideologias em cena.
Por meio do recorte de tempo escolhido, Peter Gay procurou analisar o que ele chamou de “formação da cultura de classe média”, ou melhor, de classes médias, já que, segundo ele e outros observadores, a heterogeneidade é uma das principais características desse grupo social. Dado se tratar de um problema que se apresenta a partir de uma infinitude de possibilidades de abordagem, o historiador resolveu tratar de alguns aspectos da experiência histórica da burguesia no século XIX através de indicativos empíricos que foram encontrados na obra de Arthur Schnitzler (1862-1931), o célebre dramaturgo austríaco.
As obras de Schnitzler, segundo o historiador, permitem observar determinados aspectos da cultura das classes médias no século XIX de um ponto de vista muito interessante. Schnitzler não encarnou o tipo burguês clássico, nem cultivou ciosamente os valores da burguesia – pelo menos não todos eles –, mas ocupou-se, sim, em retratar, muitas vezes pelo contraste e pela acidez crítica, elementos que constituem o cotidiano desse grupo social. Desse prisma, portanto, Peter Gay busca apreender nuances do modo como viviam aqueles sujeitos, como concebiam o casamento, o trabalho, a vida doméstica, a sexualidade, as artes, os costumes, as tradições, suas relações com as outras classes e assim por diante.
O recurso utilizado por Peter Gay é muito prolífico, pois Schnitzler, seja pela consonância, seja pela dissonância, foi um observador do mundo burguês e da civilização liberal, o que fez com que sua obra se tornasse uma fonte rica para conhecer e problematizar a experiência burguesa.
Quando Schnitzler expõe suas aventuras sexuais ou quando usa de seus personagens para fazê-lo, ele está posicionando-se em relação aos valores que constituíam seu ambiente familiar e a sociedade burguesa da época. A busca incessante do prazer erótico constitui-se em relação a determinadas condutas sexuais apregoadas, boa parte das quais Schnitzler se contrapunha.
Quando Schnitzler se enerva com seu pai por ter ele aberto uma gaveta sua sem permissão, ele nos informa sobre o valor da privacidade para aquele grupo social. Quando ele se sente sufocado por condutas éticas e morais estritas, quando anseia libertar-se de determinadas limitações artísticas e intelectuais, ou ainda quando desaprova a prática dos duelos, Schnitzler demonstra como entendia e sentia os valores que lhe foram ensinados ao longo de sua educação, familiar ou escolar.
O sujeito histórico Schnitzler, por ter sido testemunha da consolidação do mundo burguês, por estar em meio às tramas de sua experiência existencial e por ter sido afetado por esse zeitgeist, não pode furtar-se de sua influência, seja pela negação ou pela conformidade, seja ao existir cotidianamente ou escrever suas obras. As marcas históricas de sua formação social e da realidade histórica que os encerrava encontram-se indelevelmente inscritas na visceralidade de seus livros e de seus relatos. Esse é um dos principais motivos que fazem sua persona ser cara à compreensão das dinâmicas da civilização liberal e do mundo burguês, em suas faces mais empoadas ou mais obscuras.
A partir de uma vasta documentação e de um vasto conjunto de fontes e elementos que constituíam aquela realidade, Peter Gay vai adentrando e discutindo diferentes temas – i.e., aspectos daquele realidade. O livro oferece uma variedade de informações justamente pela variedade de aspectos que procura abordar. A constituição social das classes médias, por exemplo, procura investigar que sujeitos fazem parte da burguesia e o que os separa dos demais grupos sociais, tais como os proletários e os aristocratas. A concepção de trabalho procura entender de que maneira o trabalho era executado, encarado ou gerenciado pelos membros desse grupo social. Os capítulos sobre as vestimentas, os costumes e a educação buscam compreender de que maneira esses elementos se constituíam em insígnias de distinção social, especialmente em relação aos trabalhadores.
A obra toda é bem conduzida por Peter Gay, e sua erudição no que diz respeito ao conhecimento de uma infinidade de obras literárias, artísticas e científicas dessa época, bem como de documentos, cartas e diários, é realmente impressionante. Peter Gay consegue amarrar discussões com esses diferentes documentos, juntando-os e fazendo-os dialogar de maneira clara e espirituosa no sentido de elucidar conclusões, hipóteses e discussões.
A única ressalva que tenho a fazer da obra é que a constante oscilação entre a cultura das classes médias e a preocupação com a obra de Schnitzler acaba por fazer o historiador, na minha opinião, estender-se demais por determinados temas em detrimento de outros. Tomemos como exemplo a constituição do grupo social a que ele chama burguesia ou as classes médias. É fundamental conhecer que tipo de pessoas fazia parte desse grupo, que tipo de profissões ocupavam, que tipo de bens possuíam e que tipo de inserção social eles possuíam diante dos demais grupos sociais, afinal, é em função dessas inter-relações que eles se constituem. Mas o capítulo que investiga essa questão de forma pormenorizada não possui o aprofundamento que Peter Gay alcança quando fala, por exemplo, da sexualidade.
Embora a sexualidade e os comportamentos sexuais sejam um dos aspectos distintivos da burguesia, não há proporcionalidade entre essa discussão e a questão da inserção social, e não se trata de uma questão de número de páginas. Longe de tornar a obra manca ou menor, essa questão se deve à preocupação do historiador em contemplar, ao mesmo tempo, uma abordagem mais geral sobre a burguesia, quanto aspectos mais recorrentes da obra de Schnitzler. Isso faz com que, tendo dois fios condutores, a exposição às vezes se veja tracionada em direções diferentes com objetivos diferentes, afinal, como o próprio historiador escreve ao início do livro, Schnitzler não é a síntese da burguesia. Ele é um ótimo caminho para se compreender uma porção de aspectos dela, mas está longe de ser seu resumo.
Diante do plural de “as classes médias”, O século de Schnitzler deve ser encarado como uma obra que bravamente procurou contemplar criticamente a heterogeneidade dos burgueses vitorianos. Peter Gay escreve sobre médicos, advogados, pequenos proprietários, colecionadores de arte, burocratas, funcionários do governo, profissionais liberais, grandes industriais, magnatas, artistas etc. E escreve sobre esses sujeitos na Alemanha, no Império Austro-húngaro, na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos, na Itália etc. Ou seja, são muitas variáveis, muitas vidas distintas, muitos pensamentos discrepantes. Buscar um ponto em comum, que permita compreendê-los em seus próprios termos, é uma tarefa hercúlea, que Peter Gay procura levar a cabo aprofundando-se no estilo de vida burguês em espectro amplo.
Em que pese a leitura do historiador, às vezes, se aproximar de um elogio ao apogeu da civilização burguesa do século XIX, a romantização não varre a verve crítica do ofício historiográfico, fazendo de O século de Schnitzler uma importante porta de entrada para aquela realidade, através de suas variadas expressões e de seu disputado e intensamente vivo legado.
Gosto de suas resenhas justamente por não tentar diminuir um livro para fazê-lo mais “comunicável” e Peter Gay é desses autores que costumam assustar quem não é da área. Mas estranhei uma coisa, que era justamente o que eu imaginava que o livro mais tratasse: a evolução do conceito de sujeito, porque Schnitzler tinha uma interessante divergência com Freud justamente nesse aspecto; e como o autor já escreveu bastante sobre Freud, imaginei que levaria sua intrepretação para esse rumo. De qualquer forma, a impressão que me passou, é que tentou uma leitura bem histórico-sociológica do Schnitzler, quando este era um grande conhecedor de psiquiatria e, ao menos no que conheço dele, estava bastante preocupado com essa questão, e sondava os limites da persona…
Obrigado, Marcelo. O objetivo das resenhas está inscrito no nome do site: a ideia é ser mesmo um posfácio, um texto que vá além e que analise a obra, propondo uma reflexão e não uma sinopse.
Quanto a seu comentário sobre Schnitzler e Freud, bem, não tinha pensado nisso, mas acho que só vem a corroborar aquela ressalva que apontei na resenha: a de que, ao usar o Schnitzler para ilustrar e analisar determinados aspectos da experiência burguesa vitoriana, o Peter Gay acabou por ter de se preocupar com dois problemas, digamos assim.
Infelizmente não conheço o suficiente de Schnitzler para dar uma opinião mais sólida sobre as análises do historiador sobre o dramaturgo, mas gostei especialmente das investigações dele quanto à forma como a inserção social dos burgueses moldava sua visão de mundo e os valores que ele buscava cultivar. O detalhe é que, ao investigar determinados aspectos da vida burguesa, ele acaba aprofundando-os dentro do escopo crítico psicanalítico, o que, para mim, faz com que ele penetre em um universo muito individual e específico, que não precisaria ser tão aprofundado numa obra como essa, que se propõe a investigar as classes médias de um ponto de vista mais geral.
Enfim, essa ressalva, tenho consciência, se dá em grande parte devido minhas próprias posições teóricas e epistemológicas. Embora não me impeça de notar o grande valor da obra e a erudição do historiador, me deixa sentindo falta de outras discussões.
Uma última pergunta: quando leste, também achou que o historiador estava muito preocupado em rebater críticas comumente endereçadas à burguesia e ao mundo burguês?
Então, esse é um dos livros que estou para ler, por isso fiquei um pouco surpreso com o caminho que ele seguiu, não imaginava que fizesse esse tipo de análise histórica mais clássica. É claro que um só livro não pode representar integralmente a obra de ninguém, mas se vc puder dar uma olhada em Senhorita Else do Schntzler, vai ver o que estou dizendo. E o mais conhecido: Breve Romance de Sonho, também vai nesse sentido. Daí eu imaginar que era mais lógico tomar o caminho do surgimento desse tipo de conceito e a partir daí compreender o período, talvez fosse até mais fácil para explicar a dialética do pensamento do Schnitzler em relação à sociedade. Embora esse método seja mais do Foucault do que Peter Gay, mas sua resenha me fez pensar nesse caminho. Porque acho que vale a pena a gente olhar para ele de um modo mais amplo, entende? Claro que estava inserido em seu tempo, como todos nós, mas acho que a gente perde um pouco justamente dessa luta dos autores com a sociedade, aceitação por um lado e repúdio por outro, quando os olha dessa maneira, no caso, como se fosse um “retratista” da burguesia do século XIX. Só essa briga com Freud já ajudaria a entender e localizar melhor seu pensamento. Sei que estou tomando a liberdade de fazer um comentário para um livro que não li, mas tirando por sua resenha, que me parece bem correta com o pensamento do Peter Gay, até onde conheço, acredito que não é de todo equivocada.
De fato a questão do sujeito é tratada de forma curiosa ao longo do livro. Ela aparece mais virtualmente, nas frinchas das outras discussões, como quanto Peter Gay discute a família, a moralidade e a privacidade. Quando ele analisa como as plantas das casas da burguesia do século XIX mudaram, tendo então quartos individuais para o casal e para os filhos, o sujeito vai aparecendo. Somente ao final, ao falar mais especificamente com a ênfase no indíviduo de alguns pensadores desse século é que o historiador vai mais além nessa discussão, mas não muito além.
Acho que uma discussão mais pormenorizada nesse sentido deve ser encontrada nos cinco volume da Experiência Burguesa, onde ele deve ter dedicado mais linhas e mais aprofundamento para abordar essa questão. Como eu disse antes: o Schnitzler permitiu que o historiador abordasse uma porção de questões, mas como se trata de um livro sobre a burguesia ou as classes médias enquanto grupos de várias pessoas, algumas preocupações sociológicas e históricas mais amplas tomam o campo de discussão. O Schnitzler serve como pedra de toque para algumas problemáticas discutidas, mas não constitui o cerne do livro. Uma discussão de alguns de seus conceitos em embate com os freudianos, nesse ínterim, talvez ficasse deslocado.
Enfim, é uma forma de ver a coisa toda. Não acho que eles não sejam importantes, mas dado a natureza de abordagem de obra, talvez ficasse deslocado.