Nas resenhas em que falei sobre livros de Milan Kundera, o tom elogioso sempre se sobressaiu na análise, e devo dizer que minhas experiências de leitura do escritor tcheco costumam ser prazerosas – embora não num sentido tradicional de prazer. O ângulo a partir do qual Kundera enxerga a vida, os homens e o mundo é bastante singular, e foca alguns aspectos da existência que o escritor trata de modo a desequilibrar certos sensos comuns, certas assumptions que, de tão banalizadas, tomamos como naturais e imutáveis. Daí seu interesse: proporcionar perspectivas novas para coisas antigas.

Essa descrição, é verdade, poderia ser aplicada a boa parte dos escritores, especialmente àqueles que se convencionou chamar de “grandes”. No caso de Kundera, no entanto, o que torna seu ângulo de visão singular é, dentre outras coisas, sua visão existencialista sobre a vida, misturada com a proposta kitsch, à qual ele tão frequentemente recorre ao criar situações, reflexões e personagens, e que, de tempo em tempo, beira um fatalismo que ameaça comprometer a força desse ou daquele livro. É justamente sobre esse delicado equilíbrio que o presente texto quer se debruçar.

O romance A imortalidade foi publicado em 1990, seis anos após aquela que é considerada sua obra-prima, A insustentável leveza do ser. Mesmo antes desse, e depois daquele, Kundera tem publicado ensaios, artigos, novelas e outros romances, e parece haver, ainda que um tanto rarefeita, uma certa unidade filosófica em suas obras. Tal unidade não é, como podem querer alguns, “sempre a mesma”, mas um certo núcleo mais geral que se desdobra em inflexões mais específicas aqui e ali, nessa ou naquela questão. Desde seus primeiros livros (tais como A brincadeira e O livro do riso e do esquecimento) até suas obras mais recentes (tal como A festa da insignificância, publicada em 2014), perduram certos temas e certas perspectivas filosóficas, desde o totalitarismo até o que talvez se possa chamar (se possível for um tal termo) de um existencialismo dado a hedonismos (vide a resenha do livro de 2014 para maiores esclarecimentos). Além disso, em termos de unidade estética, se sobressai uma afiada narrativa, que combina a prosa com digressões filosóficas e alterna focos narrativos, passando da narração da história às considerações do escritor com leveza e categoria dignas de nota.

Se é louvável a existência de uma coerência interna na obra de um escritor, pois faz de suas publicações uma oeuvre e não um mero conjunto ou apanhado de textos, inclusive pela marca pessoal e idiossincrática que imprime a cada uma das partes dessa oeuvre, por outro lado, acabam se criando algumas recorrências que se tornam mais visíveis na medida em que se procede a uma leitura mais sistemática ou panorâmica desse escritor. Certas obsessões pessoais, portanto, acabam por se impor aos escritos, dando-lhes um certo tom monocórdio que, dito uma ou duas vezes, não faria mais do que expandir o escopo de reflexão do escritor (demonstrando a amplitude de suas considerações), mas que, no conjunto da obra, acabam por apontar para o que talvez pudesse ser chamado, arriscadamente, de “vícios”. Esses são os fios mais profundos, aqueles que se tornam discretos frente às abundâncias dos recheios narrativos, das tramas, cenas e sequências, mas os mesmos fios que numa consideração comparativa (que toma a própria obra como parâmetro) podem ser desenterrados para revelar sentidos mais profundos das visões do escritor. É aí que entra o lugar de A imortalidade nas minhas leituras de Kundera.

Talvez por conceder um lugar de peso aos apontamentos filosóficos de Kundera, talvez por ser o primeiro romance publicado após o estrondo de A insustentável leveza do ser, talvez pelo momento histórico de queda do Muro de Berlim e crise da União Soviética, talvez, mesmo, por ter sido o quinto ou sexto livro do Kundera que eu li, A imortalidade parece ter soado algo diferente das demais obras de Kundera, mesmo das mais recentes. E esse “diferente”, sinto dizer, é num sentido mais negativo do que positivo.

Asserções desse calibre, assim, algo pretensiosas, não podem passar impunes: demandam explicação. Portanto, ei-las. Ao contar as peripécias de Agnès, Paul, Laura e do professor Avenarius, além de (re)criar uma trama histórica divertidíssima envolvendo Goethe, sua mulher e sua amante, Kundera parece flanar na narrativa, preocupado muito menos com os detalhes de verossimilhança realista do que com as injunções de momentos-chave, dos quais ele parte para suas digressões filosóficas. Nada de novo aí, e nada passível de crítica: funcionou muito bem no livro de 1984, e continua funcionando muito bem no de 1990 (o que só prova a maturidade e a segurança narrativa do escritor tcheco). Aquilo que trato aqui como um problema está justamente no sentido dado às digressões filosóficas, pois elas, mais do que nos outros livros de Kundera, parecem conduzir a um pessimismo fatalista (ou algo muito próximo disso).

O pessimismo e a desilusão de Kundera estão longes de ser um problema, pois são, em grande medida, a matéria-prima daquilo que há de mais visceral e profundamente humano em, por exemplo, A insustentável leveza do ser. É do desencantamento e da visão sombria do escritor que surgem seus personagens mais interessantes e suas situações mais expressivas. O detalhe diferencial a que me refiro aqui é: por mais apertada que seja a frincha que permite vislumbrar um horizonte diante do peso (ou da leveza) do ser, essa frincha existe. E Kundera não a renega embora a aborde a partir de pontos diferentes. Em A imortalidade, no entanto, ele parece não querer se agarrar ao facho de luz que entra por essa frincha, passando, ao contrário, a lamentar que seja tão estreito.

E é a partir disso que diversas passagens deixam de projetar, passam a gerar paralisia. Abandona-se o movimento em nome da permanência estática. Assim, as perturbadoras constatações acerca da leveza da existência deixam de ser uma urgência filosófica, um catalisador para uma sede de viver, de experimentar, de fruir (por mais “fúteis” que pareçam essas experiências diante da terrível e inefável leveza). Pelo contrário, elas se tornam lenha para alimentar uma fogueira que, antes de uma fulgurante centelha hedonista, gera uma nuvem fumarenta de (auto)comiseração. As aventuras sardônicas e quase picarescas que derivavam da rascante constatação sobre a leveza do ser, por limitadas que fossem, dão lugar a digressões crescentemente pedantescas, que se desdobram em catalogações e tipificações das mazelas existenciais, mais limitadas e individuais do que outrora. Acredito que por isso as ironias com a imortalidade e com Hemingway, um dos que com mais urgência sentiu o peso (ou a leveza, sempre) do ser.

Por tudo isso, pela dureza dessas acusações, creio ser necessário dar o benefício da dúvida a Kundera diante das circunstâncias de minha leitura. Os demais livros do escritor, li-os todos com relativo intervalo de tempo de um a outro, o que contribuía para que suas visões sombrias assolassem menos minhas visões sobre sua obra. Tendo lido A festa da insignificância e A imortalidade com muito menor intervalo, quem sabe tenha infringido o cuidado que temos que ter ao explorar os romances e novelas do autor tcheco: temos de ter comedimento com Kundera, não indo com muito voracidade ao cerne de suas considerações, sob a pena de que, (1) fiquemos por demais desiludidos e rabugentos, ou (2) acabemos por repreender sua incômoda visão sobre o homem como uma ideia fixa. Embora continue achando que A imortalidade tem os problemas que apontei acima, não posso deixar de considerar o desdobramento (2) como uma possibilidade.