“Há homens que já nascem póstumos”. Nietzsche tinha plena consciência de que suas idéias somente influenciariam gerações posteriores àquela que pertenceu. Se durante a sua época o filosofo não foi valorizado, no século seguinte ocorreu exatamente o oposto: Ele se tornou um dos mais célebres pensadores a serem discutidos e assim segue até hoje.

Li sua crítica ardente à sociedade e o ser humano nos livros “Alem do Bem e do Mal”, que mostra as diferentes facetas que uma pessoa pode assumir, e, sobretudo, “O Anticristo”, onde ele mostra que o mal da sociedade está na fé cega. Eles ficaram por um bom tempo na minha cabeça. (e é comum isso acontecer com leitores de Nietzsche). A ideia agora é mostrar como o pensamento desse filósofo pode ser visto em um filme. Escolhi falar hoje sobre Dogville, porque não vejo melhor exemplo de narrativa que se foca tão somente nos personagens do que essa.

DOGVILLE: A História

Dogville é uma pequena cidade que fica nas montanhas rochosas dos EUA. A região passa por tempos difíceis, mas seus poucos habitantes continuam vivendo no local, cada um cumprindo sua função. Com a chegada de Grace, as coisas mudam bruscamente, ora para o bem, ora para o mal. O final do filme não poderia ser mais surpreendente. Na narrativa, encontramos alguns momentos monótonos, do cotidiano dos moradores da cidade, mas, assim como na vida real, as coisas podem mudar bruscamente. Acho que essa é a grande graça do filme.

Outra coisa que chama muita atenção é o fato do filme praticamente não usar cenário. A impressão que temos é que os personagens caminham sobre uma grande planta baixa de cidade. As casas não têm paredes, teto, ou portas. A iluminação e figurino também tende a usar cores neutras e sem destaque. Quando você assiste ao filme, só lhe resta uma opção de foco: Os personagens.

Pra mim, o diretor Lars Von Trier soube muito bem como articular a história. Assisti-lo é uma verdadeira aula do que é vida em sociedade. Se numa primeira vista os moradores são boas pessoas, que seguem seu cotidiano, eles também escondem um outro lado. Eles assumem uma personalidade para a cidade, mas existe um lado que somente eles (e nós, que assistimos o filme) podemos ver. E é até irônico, porque como não existe realmente um cenário, é como se todos os personagens pudessem ver o que acontece na trama, afinal está diante dos olhos deles, mas não vêem. Como já disse antes, é surpreendente.

No olhar de Nietzshe…

Falando sobre religião, uma das críticas que Nietzsche faz ao cristianismo é o fato do padre agir como se fosse um ser acima dos outros; um ser que acredita que pode mudar decisões, mostrar os princípios de moralidade e pregar com sabedoria, sendo sempre inquestionável. Dogville possui uma igreja, mas não um padre. Mesmo assim, o personagem Tom se assemelha à essa figura pois organiza “sermões” toda semana para os moradores e também se enxerga como um ser superior, como mostra o trecho do filme: “Tom organizara reuniões semanais sobre rearmamento moral e era seu dever beneficiar a cidade com elas […] Se alguém tentava decifrar qual era a sua profissão ele responderia “mineração”. Ele não abria caminho através de rochas, mas de algo ainda mais duro. Ou seja, a alma humana. Bem onde ela cria bolhas.”

Já sobre o amor, para o filósofo, “O amor é o estado em que os homens mais têm probabilidade de ver as coisas como elas não são” e a personagem de Grace é prova disso. Ela se apaixona por Dogville e passa a ver a cidade como um lugar bom e acolhedor, ela trabalha para todas as pessoas e confia profundamente em Tom. O personagem Chuck chega a avisá-la desse sentimento um pouco antes dela conhecer a fundo Dogville: “Essa cidade apodreceu, e de dentro pra fora… essa cidade não me atrai, mas atrai você. Admita, você se apaixonou por Dogville[…]As pessoas são iguais em todos os lugares: gananciosas como animais”. Mas Grace não consegue enxergar o que está bem a frente de seus olhos.

Quanto à moralidade, a sociedade de Dogville está cercada de valores morais que, segundo Nietzsche, transforma as pessoas em um rebanho facilmente manipulável. Esta moralidade, contudo, não se mantém o tempo todo: As pessoas se comportam seguindo esses valores quando estão em grupo, mas seguem seus próprios sentidos quando sozinhas. Prova disso está nas chantagens, agressões e estupros que Grace recebe ao longo do filme quando está sozinha com algum dos personagens. Esse comportamento muda quando atinge a esfera pública. Nietzsche fala que é hipocrisia dizer que o ser humano segue a moralidade imposta sempre.

Por fim, a vontade de potência, termo que Nietzsche usa para denominar tudo que uma pessoa pode ser, mas não é. Neste sentido, o filme se inicia com uma frase que mostra a ausência de vontade de potência nas pessoas de Dogville: “esta é a triste história da cidade chamada Dogville. Dogville ficava nas Montanhas Rochosas dos EUA. […] Os residentes de Dogville eram honestos e gostavam de sua cidade. Embora alguma alma do leste tenha dado à rua principal o nome de Elm e embora não haja olmo algum por aqui, eles não viram razão para mudar coisa alguma”. Assim se comportam as pessoas de Dogville: Não pensam em mudar nada. Nietzsche acredita que a vontade de potência é anulada quando entra em jogo a moralidade, quando o ser humano deixa de seguir o seus sentidos: “Considero corrupto um animal, um indivíduo, uma espécie quando despreza seus sentidos”.

Outro exemplo claro da ausência da vontade de potência pode ser percebido pelo personagem Bill Henson, que estudava, mas tinha plena consciência de que sempre seria um idiota: “Bill era burro, e sabia disso. Idiota demais para se tornar engenheiro, e tinha certeza disso.”

Dogville, se torna, por tudo isso, um filme realmente clássico e indispensável para fãs de cinema, assim como Friedrich Nietzsche é para quem gosta de analisar a sociedade. Mas essa é só a minha opinião, e como diria o filósofo “Não há fatos eternos, como não há verdades absolutas.”

Sobre a autora: Ingrid Coelho também pode ser escontrada no blog Dindivagando

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