“O livro do ano”. Assim chamaram 2666 em outros países, quando do lançamento das respectivas traduções, e assim a Companhia das Letras resolveu divulgá-lo por aqui. Como se não bastasse, o livro teve destaque suficiente em prateleiras e vitrines das livrarias em que passeava: um oásis no meio de tanto sangue e caninos expostos. Ou seja: fui fisgado de imediato. Porém o preço tornava-o uma aquisição de risco: imagina se eu não gostasse do livro?

Foi quando o procurei nas Casas da Leitura daqui de Curitiba. O acervo deles é bem recente e às vezes me sinto como se tivesse entrado numa livraria cuja dona, compreensiva, me permitisse ficar com os livros por 15 dias. Uma espécie de test-drive literário.

Mas não havia um exemplar sequer do livro. Pude notar, no entanto, outros volumes do autor: Estrela distante, Noturno do Chile, Putas assassinas e Os detetives selvagens. Nas capas, uma pintura mais bonita do que a outra. Decidi-me então pelo mais curto (Noturno do Chile, 120 páginas), para ter um primeiro contato com o estilo do autor – se tivesse escolhido pela capa, teria demorado muito mais com a leitura d’Os detetives selvagens (624 páginas).Este foi um dia em que voltei para casa com 15 livros na mochila – entre os quais Asterios Polyp, que K. me emprestou após um café no Paço da Liberdade. Ele comentou o que sabia sobre o autor e sua polêmica obra La literatura nazi em América e me pediu para informá-lo se Noturno do Chile era tão engajado quanto parecia. Curti, recomendei e, enquanto começava a economizar pra comprar 2666, vi que UM exemplar dele estava sendo cadastrado no acervo da Biblioteca Pública.

Resumo da ópera: apesar de conferir diariamente o status do livro na biblioteca, não consegui ser o primeiro a emprestá-lo. Mas o consegui, meio que por acaso – não estava sequer na estante de mais procurados – num dia em que, para variar, encontrei o mesmo K. no café do Paço da Liberdade, que desta vez me deu a capinha do chá Twinings de Four Red Fruits pra ter certeza que eu não usaria a aba de um livro tão grosso para marcá-lo.

Comecei a leitura assim que acabei Sonho interrompido por guilhotina, de Joca Reiners Terron. Como já sabia da burocracia que enfrentaria no DETRAN (comecei a auto-escola), levei 2666 pra me acompanhar numa manhã que, sem ele, seria inteiramente perdida. Isto já ajudou a dar um gás na leitura: quem me conhece sabe que pouco leio em casa e que muitas das minhas leituras são feitas no ônibus ou andando – sim, meus braços ficaram mais fortes por ler 2666 desse jeito.

Será que ao menos UMA vez você poderia ir direto ao ponto. Afinal, qual a história do livro?

Bem, com essa mentalidade, talvez 2666 não seja o livro mais adequado pra você. Há cinco partes no romance e Bolaño, em nenhuma, vai direto ao ponto. Vou comentar um pouco sobre cada uma, mas fique tranquilo: nem que eu possuísse um grande poder de síntese, conseguiria contar todo o enredo e estragar a leitura de alguém.

A parte dos críticos.

Jean-Claude Pelletier, Manuel Espinoza, Piero Morini e Liz Norton não teriam nada em comum, não fosse a obra literária de Benno von Archimboldi. Na França, Espanha, Itália e Inglaterra, respectivamente, conheceram de formas diferentes os livros do escritor e tornaram-se especialistas em sua bibliografia. Encontram-se nos diversos eventos acadêmicos disseminados pela Europa e criam uma amizade fortíssima.

Quando começam os boatos de que Archimboldi estaria cotado para o Nobel de Literatura, eles passam a alimentar esperanças de que o misterioso autor, com a visibilidade do prêmio, se torne acessível. Sua editora não tem contato direto com ele há tempos, nem há fotos suas nos seus livros ou informações biográficas que permitam uma pesquisa aprofundada. É praticamente certo que usa um pseudônimo. Na busca por detalhes ínfimos e incertos da vida do escritor, três deles vão até ao México por causa de uma pista.

N’A parte dos críticos já dá pra perceber como a banda toca. Não há um protagonista definido. Por exemplo, cada um dos quatro críticos têm suas complexidades e contradições expostas, idiossincrasias que seriam cortadas em favor do famoso ir direto ao ponto. Mas, então você me diz: Tá, não há UM protagonista, mas QUATRO: nada de novo. E aí respondo: calma, posso terminar de falar?

O romance é povoado de personagens diversos, os famosos coadjuvantes e figurantes. O “pulo do gato” está justamente neles: há momentos em que os holofotes são postos justamente sobre tais figuras. Dá tanta atenção que chega a causar a impressão de que estávamos lendo sobre uma grande cadeia de eventos que desembocariam na apresentação DAQUELE personagem em especial. E depois de criada uma ligação do leitor com ele, o narrador retoma o fio da meada, justamente quando a curiosidade está mais aguçada.

Nesta característica, recorrente em todo o volume, 2666 se aproxima de obras como o seriado televisivo Lost, o mangá Monster – de Naori Urasawa – e o livro A história sem fim – de Michael Ende. As pontas soltas, as lacunas a ser preenchidas pela imaginação e os personagens carismáticos fazem parte do interessante jogo proposto pela obra.

Ademais, sobre A parte dos críticos, vale ressaltar a identificação com essa história de amizade embasada no gosto – quase obsessão – pela literatura. Posso dizer que devo muitos de meus melhores amigos a ela.

(Continua!)