Por Priscila Calado (*)

Gertrude Stein (1874-1946), americana que viveu em Paris e fez parte da chamada “geração perdida”, é lembrada por ter abrigado em sua casa os escritores, poetas e artistas mais ilustres da época, entre os quais Picasso, Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald e Ezra Pound. Também revolucionou a linguagem na poesia, na dramaturgia, na ficção e na não ficção. É pouco traduzida e disseminada pelo Brasil.

Stein foi aluna de William James, filósofo e psicólogo americano, que criou o termo “fluxo de consciência”, de modo que sua prosa foi muito influenciada por essa consciência contínua, com repetições de palavras que podem ter seu sentido alterado dependendo do arranjo na frase.

No texto “Como a escrita é escrita”, de 1935 (presente na edição brasileira de Ida – um romance), Stein fala de como o escritor reflete a sua contemporaneidade, mesmo enfrentando resistências e não sendo muitas vezes aceito em sua época. Ela afirma que o intuito de capturar o imediatismo presente no século XX a levou a ousar por meio da gramática, usando particípios presentes, novas construções gramaticais (que, apesar de corretas, foram alteradas) e limitações de vocabulário, livrando-se do máximo de pontuação possível, pois “a vírgula era apenas um estorvo”.
Percebemos que até mesmo a leitura em voz alta pode transformar o texto, que possui rima quase infantil.

“Cuco gralha corvo e andorinha é sinal.
Pintassilgo cotovia tordo e papafigo não é.
[…]
Aranha à noite é dia contente.
Aranha na aurora é amargura que aflora.”

As repetições que visualizamos injetam um significado mais profundo às palavras, que ficam ecoando no nosso corpo. Só conseguimos ler Gertrude com o corpo todo, até porque ela dá um formato novo às palavras, que se expandem e parecem esculturas.

“Ninguém sabia nada a respeito dela só sabiam que ela era Ida mas isso era o suficiente porque ela era Ida a bela Ida.”

Apesar de ter feito mais sucesso com A autobiografia de Alice B. Toklas, Ida – um romance foi uma das obras mais experimentais e ousadas de Stein, um romance de formação com frases aparentemente repetitivas e tediosas, mas que se tornam as forças definidoras da existência da personagem.O livro tem um ritmo próprio que o leitor só experimenta conforme avança na leitura.

É preciso captar sua narrativa experimental, com aspectos não apenas do romance de formação, mas também da poesia e da autoficção. Em relação ao experimentalismo, Ida é comparado a uma pintura cubista, tendo em vista que as palavras são apresentadas em várias dimensões, como se fossem colagens, tomando formas poéticas e musicais que nos envolvem e nos levam a ler em voz alta, tão grande a vontade de captá-las.

O romance foi escrito nos anos finais da década de 1930, quando a própria autora já era uma celebridade, de modo que há na obra uma exposição sobre a cultura da fama e o tema da identidade.

Pode até parecer um conto de fadas, em que a protagonista está sempre cansada e, por isso, sempre descansa. Ela fala consigo mesma e se casa com o primeiro companheiro que a vida lhe apresenta, separando-se quando lhe dá na telha, além de ter muitos cachorros. Assim, o enredo é simples e ao mesmo tempo difícil de ser apreendido, pois demanda envolvimento.

Ida era uma mulher que dizia muito sim, seja para situações cotidianas da vida, seja para homens que se aproximavam dela e com os quais ela aceitava se casar. Mas, quando ela se levantava, ia embora sem pestanejar. Apesar de ser uma mulher que fazia sempre as mesmas coisas, era extremamente imprevisível, o que sempre surpreendia as pessoas que pensavam conhecê-la.

“Ninguém sabia o que Ida ia fazer embora ela sempre fizesse a mesma coisa do mesmo modo, mas mesmo assim ninguém sabia o que Ida ia fazer ou o que ia dizer. Ela dizia sim. É isso que Ida dizia.”

E como ela viajava! Morou em diversas cidades e se casou várias vezes, mas escolher ela nunca escolhia. Com o envelhecimento, ela pareceu sossegar em uma única cidade com o último marido, mas o final fica em aberto.
Gertrude Stein merece ser mais lida e conhecida por leitores brasileiros, ainda mais porque não segue convenções narrativas em sua escrita, o que pode assustar, mas sempre proporciona uma experiência significativa de leitura pelo seu trabalho com a linguagem.

Ida – um romance foi recentemente lançado pela editora independente Ponto Edita, com tradução de Luís Protásio, textos de abertura de Badi Assad e Luiz Päetow, texto complementar de Sherwood Anderson e capa e ilustrações de Pedro Monfort. A edição considerou aspectos da obra no design do livro, de formato estreito e alto, remetendo a uma coluna de jornal, como se a vida de Ida estivesse nas notícias. Destaque para o texto de Luiz Päetow, que é uma cápsula teatral capaz de oferecer ao leitor uma prévia do labirinto poético de Stein.


Priscila Calado é formada em Letras, professora de português e inglês, revisora e preparadora de textos, mas, acima de tudo, leitora, apaixonada por filmes, séries e todas as formas artísticas. Instagram: @pri_leitora