Quando J.K Rowling anunciou que publicaria “Os contos de Beedle, o Bardo”, mencionado –  no sétimo  livro da saga Harry Potter:  “As Relíquias da Morte” – como o livro de contos de fadas que os bruxos contam para seus filhos quando crianças,  houve um alvoroço por parte dos fãs da saga. Por mais que a escritora britânica tivesse avisado que o livro não seria um  complemento da história de Harry , os fãs não se importaram, e, assim que o livro foi lançado, foram correndo comprar um exemplar. Eu, declaradamente fã da saga, não comprei o livro; ganhei, de presente de natal/aniversário, de uma amiga de SC, em janeiro de 2009.

Enquanto lia o prefácio de “Os contos de Beedle, o Bardo”, escrito pela J.K (né, porque eu acredito que foi a Hermione quem traduziu os contos e tal. LOL ), JURO que senti uma pontinha de vergonha quando ela citou o nome completo do Dumbledore e suas qualificações : Professor Alvo Percival Wulfrico Brian Dumbledore, Ordem de Merlim, Primeira Classe, Diretor da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, Chefe Supremo da Confederação Internacional de Bruxos e Bruxo-presidente da Corte Suprema . Quando li, parei, fiquei uns dois minutos pensando: ‘Caramba! Eu leio isso? Eu sou fã de uma coisa dessas? ‘ Aí eu ri, e a minha risada foi a resposta que eu esperava.Aproveitando a deixa da J.K, sobre Dumbledore, acho importante ressaltar que todos os cinco contos que compõem o livro “Os contos de Beedle, o Bardo” são comentados por ele. Entretanto, a própria escritora avisa que os comentários foram feitos uns 18 meses antes dos acontecimentos que se desenrolaram no alto da Torre de Astronomia de Hogwarts. Ela alerta, também, para o fato de Dumbledore, na ocasião da confecção dos comentários, ter ocultado muito do que sabia sobre o último conto do livro, “O conto dos três irmãos”, por motivos que os leitores dos sete volumes de Harry Potter entenderão.

Por último, e não menos importante, J.K informa-nos de que os royalites do livro  serão doados ao Children’s High Level Group, que tem por objetivo encerrar o uso de grandes instituições e promover caminhos que permitam às crianças viverem em família – a própria, a adotiva ou pais adotivos nacionais – ou em casas para pequenos grupos. Acredito que a nobreza desta iniciativa dê um tom grandioso a  este pequeno livro.

Ferir-se é tão humano quanto respirar. Assim fala Alvo Dumbledore, quando comenta o conto “O coração peludo do mago”. Acredito que essa frase, de certo modo, sirva como síntese para os cinco contos que compõem o livro “Os contos de Beedle, o Bardo”, de J. K. Rowling.

No primeiro conto, “O bruxo e o caldeirão saltitante”, temos, em um primeiro momento, o ferir-se no sentido literal, pessoas doentes, feridas, que precisam de ajuda. Fisicamente próximo, e emocionalmente distante dessas pessoas, vive um bruxo frio, (figuradamente ferido), que não se preocupa com tais pessoas, mesmo tendo os dons necessários para ajudá-las.

Ele só consegue sarar as feridas dos seus vizinhos, quando sara as suas próprias, quando é vaticinado a estar na ‘pele dos outros’, uma vez que o Caldeirão saltitante, que outrora pertencera a seu pai, replicava, perante ele, durante todos os dias, os problemas das pessoas que haviam recebido uma negativa ao pedirem-lhe ajuda. Às vezes, para que possamos pensar melhor acerca de determinados assuntos, é necessário sentirmos as feridas alheias e tomá-las como nossas, ressignificando-as.

O Segundo conto, “A fonte da sorte”, que é meu preferido (o quê significa que comentarei um pouco mais sobre ele do que sobre os demais contos), aborda o ferir-se tanto no sentido literal quanto no figurado. As três bruxas – Asha (que tinha uma doença cuja cura era ignorada por todos), Altheda (que tivera seu dinheiro e sua varinha roubados) e Amata (que sofria os ferimentos causados por ter sido abandonada pelo amado) – e o Cavaleiro Azarado, que, pelo adjetivo substantivado, dispensa comentários, intentam se banharem na fonte da sorte para se lavarem dos seus problemas, das suas feridas, e terem uma vida promissora.

Em determinado momento, quando finalmente começariam a seguir o caminho que os levariam até a fonte, os quatro viajantes encontram um monstruoso verme branco, inchado e cego (“no meio do caminho tinha um monstro, tinha um monstro no meio do caminho…”), que eu, devido ao fato de o verme ser BRANCO, gosto de encarar como uma alegoria para representar o caminho ainda não traçado, cujas suas (das bruxas e do cavaleiro) pegadas, preencheriam o branco, o vazio.

Para permitir que os quatro viajantes passassem, o monstro propôs o seguinte enigma: (Isso me lembra de uma certa esfinge…) Paguem-me a prova de suas dores. Por mais que tivessem tentado, usando magia, as bruxas não conseguiram decifrar o enigma. Só quando Asha chorou- demonstrando que o quê lhes era pedido era apenas uma prova de humanidade – que o verme bebeu suas lágrimas e permitiu que eles passassem.

Ao se depararem com uma subida íngreme, e, por mais que subissem, não saiam do lugar, tem-se o  segundo enigma que as três bruxas e o cavaleiro tiveram de decifrar : Paguem-me os frutos do seu árduo trabalho.  Acredito que haja, nessa parte, uma referência ao Mito de Sísifo. Depois de um bom tempo tentando avançar, eles começaram a suar e, na medida em que as gotas caiam na terra, a inscrição que bloqueava o caminho, desaparecia.

Quando, enfim, avistaram a fonte, as bruxas e o Cavaleiro tiveram o caminho barrado por um riacho, e esbarraram, assim, em mais um enigma: Paguem-me o tesouro do seu passado. A pessoa que conseguiu solucionar esse enigma foi Amata, que usando um feitiço (obliviate?) apagou as memórias do seu antigo amor.

Então, a fonte apareceu diante dos quatro. Apenas uma pessoa poderia banhar-se nela, e, antes que pudessem decidir qual seria, Altheda, Amata e o Cavaleiro foram surpreendidos por Asha, que devido ao grande esforço feito para chegar até ali, caiu no chão, muito doente, à beira da morte.

Foi quando Altheda, reunindo ervas que se encontravam nas proximidades, fez uma poção e deu-lhe de beber. Asha foi curada. Então, ela e Altheda disseram não precisar mais da fonte, já que uma fora curada, e a outra aprendera como ganhar dinheiro para se sustentar, já que demonstrara habilidade em manipulação de ervas.

Parecia, então, que seria Amata quem se banharia na fonte, mas ela disse que não precisaria mais, pois quando apagara as memórias dos momentos que tivera com o homem que a abandonou, tomou consciência de que ele não merecia seu amor, portanto, ela  constatou que teve sorte de ter sido abandonada por ele.

Então, ela disse que o Cavaleiro Azarado merecia se banhar na fonte; que sua nobreza fizera com que ele fosse agraciado com o privilégio de se banhar na fonte. Quando saiu da água, o Cavaleiro se jogou aos pés de Amata, declarando-se apaixonado por ela e pedindo sua mão em casamento.

Ao fim do conto, todos tiveram seus problemas solucionados, e jamais souberam que a fonte não possuía poder algum. Sendo bem clichê, na realidade, nós fazemos nossa própria sorte. Às vezes, só precisamos aprender a prestar atenção nas coisas simples da vida. O próprio ato de viver já é, por si só, mágico. Viver é buscar o equilíbrio entre cair e levantar, se ferir e se curar, sorrir e chorar… “viver… o senhor já sabe: viver é etcétera…”

O conto  “O Coração peludo do Mago” aborda, de forma interessante, a questão de pessoas quererem evitar aquilo que as constitui como seres humanos. O Mago queria evitar o amor, o sofrimento, as dores, as feridas, e ao fazer isso, acabou por evitar a vida, tornando-se inumano e causando sofrimento aos outros.

Em “Babbitty, a coelha, e seu toco gargalhante”, podemos perceber como o bom uso da inteligência também pode ser considerado uma forma de magia.

“O conto dos três irmãos”, que é o último do livro, já é velho conhecido dos leitores da Série HP. Nem preciso dizer que este conto fecha o livro com “chave de ouro”.  E que ele, por certo, é a razão de o livro existir. “O conto dos três irmãos” renderia um comentário gigantesco. Mas eu poderia, ao falar sobre ele,  estragar a surpresa de várias pessoas que ainda não leram o sétimo livro de “Harry Potter” (não é, Anica?). Portanto, basta dizer que, neste conto, podemos perceber, de forma intensa, as consequências geradas pela ambição dos seres humanos, o desejo de ser o mais poderoso, o imortal, enfim. Vencer a morte, “a indesejada das gentes”, eis o um dos maiores anseios da humanidade. Assim, conviver com a iminência da morte, que, conforme Dumbledore, “para quem tem a mente bem estruturada é só a próxima grande aventura”, é ter a certeza de que “viver é negócio muito perigoso”.

Os contos de Beedle, o Bardo
J.K. Rowling
Tradução: Lia Wyler
128 páginas
Preço sugerido: R$ 24,50

Sobre o autor:  Cleonice Machado é mestranda em Literaturas de Língua Portuguesa, com ênfase em Literaturas Africanas. Acredita que isso seja informação demais. Para o caso de não ser uma overdose de informações, é, também, apaixonada por Futebol e Política. Quando não está no Mineirão, assistindo aos jogos do Clube Atlético Mineiro, ou nas ruas, militando, é professora de Literatura. Mas, sem ingerir quantidades cavalares de café, “não sou nada, nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Vocês a encontram no twitter como @cleoamachado .

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