Depois que Llosa foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura nesse ano, resolvi que precisava saber mais sobre como funcionam essa “coisa” de laurear alguém com o Nobel, quais são os critérios, que parâmetros a Academia Sueca costuma empregar, que tipo de estilo, apresentação estética e temáticas as obras costumam ter etc.

Nesse sentido preciso dizer que a discussão lá no Fórum Meia Palavra com o Tiago (Lord_Ueifol) e o Luciano (Luciano R.M.), os especialistas em Nobel da equipe Meia Palavra; foram de grande ajuda. Dá para ter uma boa idéia do processo que envolve a escolha do laureado e que tipo de expedientes são levados em conta para a premiação de tão distinta honraria.

O Tiago e o Luciano não ficaram nada contentes com a escolha, e eu resolvi saber mais desse escritor peruano e entender o que eles dois estavam querendo dizer com suas críticas. Depois de ter lido três outros romances, cheguei então a Batismo de fogo, segundo romance publicado pelo autor, em 1963 e recebido com uma atenção maior da crítica da época que seu livro anterior.

Batismo de Fogo (La ciudad y los perros) conta a história, a partir de vários focos narrativos (marca de outras obras do autor, como Pantaleón e as visitadoras e A festa do bode), de um grupo de garotos que passa pelas agruras do serviço militar. Llosa estudou em um colégio militar, tendo saído da instituição para concluir seus estudos em outro lugar. A experiência pela qual ele passou nesse tempo tem uma marca muito forte em sua literatura, ecoando em diferentes intensidades em outros livros dele, como os dois já citados e Quem matou Palomino Molero?

Em Batismo de fogo desfilam diversos personagens, todos jovens em formação que se chocam com a austeridade e a severidade da vida de caserna. Embora o local seja também um internato que cumpre a função de formação escolar, o local é gerido e administrado de acordo com a férrea disciplina militar, não deixando espaço para misericórdia para com os garotos.

A experiência, que deve ter sido um tanto traumática, de Llosa no Colégio Militar reverbera fortemente nesse romance. O livro se constitui quase como um libelo contra os preceitos que regem a disciplina e a metodologia de ensino militar, pois inculcam mentalidades que produzem pessoas não abertas ao diálogo e truculentas, que acreditam que a virilidade é sinônimo de violência ou que, para ser respeitado, é preciso se impor de forma ostensiva e até arrogante, enfim, o colégio militar embrutece seus alunos para transforma-los no material não-maleável que as fileiras do exército requerem.

A questão de autoridade é explorada através da arbitrariedade com que as políticas e o cotidiano disciplinar do colégio são conduzidos, mostrando que esse “universo” cerceado e pautado no que parece ser a “lei do mais forte” (ou do “que tem mais capacidade de se impor”) esmaga sonhos e esperanças da mesma forma com que cria cidadãos belicosos, cuja sensibilidade foi obliterada pela necessidade de embrutecimento de sobrevivência.

Alberto, o protagonista da história, representa esse descompasso que há entre o “mundo do colégio militar” e o que se encontra fora de seus limites, já que ele se vê as voltas com uma realidade “testosteronizada”, em que a hombridade se vê testada a todo o segundo e onde ele precisa endurecer-se para sobreviver (uma doentia busca por ser mais “macho” que os outros); e uma realidade externa, onde ele tropeça em palavras e sentimentos em relação a uma menina por quem tem uma queda.

A formação que ele recebe no colégio militar, esculpida a duras penas pela acabrunhante rotina de tensão e “hombrização forçada e distorcida” torna-o inadequado para a sociedade fora desse “mundo”. Alberto, assim como outros garotos, se parece com Paul Baumer, de Nada de novo no front e que também sofre com essa inadaptação com a sociedade “não-militarizada”, embora esse último tenha lutado na Primeira Guerra Mundial, o que lhe rendeu experiência de horror mais profundas.

Expondo os dramas e explorando os dilemas dessa formação e tecendo críticas ora mais virulentas ora mais veladas, Mario Vargas Llosa de Batismo de fogo encarna a “justificativa” da Academia Sueca, que mencionou a “cartografia das estruturas de poder” de suas obras, entretecendo narrativas que se espraiam no mesmo ponto: o questionamento desse tipo de formação.

As posições que ele foi defendendo com o passar do tempo parecem afasta-lo dessa perspectiva mais crítica, que em 63  fervilhava com a militarização do Estado latino-americano (com o perdão da generalização), de modo que o livro sirva para compreendermos também a caminhada ideológica e as transformações no pensamento e nas posições desse frente a realidade.