Vim a conhecer A cor púrpura através do filme de Steven Spielberg, que, aliás, é muito bom. Confesso que não sou um grande apreciador de leituras de livros cujas adaptações cinematográficas eu já conheço. Porém, após ter lido O silêncio dos inocentes depois do filme, estou revendo minha posição a respeito: há algo no livro que faz a leitura valer a pena mesmo que você já conheça a história.

O romance em questão é de autoria de Alice Walker e foi trazido a público em 1982. Através de cartas escritas com a linguagem simplória e coloquial, a autora vai nos mostrando o árduo dia-a-dia de Celie, uma mulher negra cujo cruel marido ocupa-se em transformar-lhe a vida em um Inferno. As cartas são direcionadas a Deus, já que sua irmã, da qual se separou ainda criança (por interferência de seu marido, que lhe direcionava olhares lascivos), nunca lhe escreveu depois de ter ido embora.

Celie se casou com o “Sinhô” Albert, totalmente por arranjo de seu pai, que a negociou com uma impessoalidade repulsiva, sendo obrigada a assumiu as rédeas da casa de seu marido e tendo que ser esposa, dona de casa explorada e mãe de filhos de outro casamento de Albert. Os maus tratos que remontam a época passada em casa paterna, fizeram com que Celie não pudesse mais gerar descendentes.

Se o filme consegue comover o espectador pela crueldade e o machismo com que “Sinhô” Albert trata Celie, o livro bota as palavras na boca dela, que narra a terrível trajetória de sua vida naquela casa, deixando o tom mais pessoal, fazendo com que Celie, na sua solidão, relate tudo como um diário e atinja em cheio o leitor. A naturalidade da submissão que ela assume em relação aos maus tratos e o requinte de indignidade que sofre, revoltam, pois parece que na ignorância Celie aceita àquilo tudo passivamente, aceitando a fatalidade de sua situação como algo inevitável.

Porém, abaixo daquela carapaça de submissão se encontram as brasas da resistência, que vão se reavivando conforme Celie vai convivendo com outras pessoas e descobrindo as coisas a partir de outros prismas. Docí Avery, a amante que “Sinhô” Albert traz para casa, com a maior naturalidade do mundo, se torna amiga de Celie e logo as duas passam a ser confidentes e depois até mesmo amantes.

A truculência de Albert varia conforme a freqüência dos encontros com Docí, o estranho triângulo formado vai tornando a consciência de Celie mais crítica e sua indignação vai crescendo pouco a pouco. Até mesmo a impetuosa Sofia, a mulher de Harpo (filho do “Sinhô” e enteado de Celie), que não deixa ninguém lhe bater, dá o exemplo a que Celie, para que essa veja que seu destino de escorraçada não é inexorável.

Alice Walker conseguiu construir uma história com uma narrativa não-convencional, que toca não em um, mas em vários pontos nevrálgicos, motivos de polêmicas; sendo que, embora não os desenvolva profundamente, os traz a tona e com eles estrutura uma sofrida história de vida. No livro há espaço para machismo, patriarcalismo, homossexualidade, drogas, racismo e a intrincada e delicada questão que rodeia a Libéria.

O romance consegue aglutinar todos esses pontos dentro da micro-história de Celie e dos eventos e pessoas que orbitam a sua volta (ou seria a história dela orbitando ao redor das outras?), pintando um retrato da espinhosa caminhada na luta pela dignidade e respeito. Celie é a personagem que aglutina todas as características sordidamente rechaçadas pelos vis preconceitos dentro do livro: é mulher, negra, esposa (dentro do sistema patriarcal encarnado por Albert). A conflituosidade presente no livro, reavivada a cada instante pelo temperamental comportamento de Albert, fazem com que a história cative o leitor, pela revolta contra a opressora realidade de Celie ou pela simpatia para com os oprimidos.