A Guerra Fria toldou os ânimos das pessoas para que aderissem a um dos dois hemisférios ideológicos nos quais o mundo estava dividido, ou pelo menos isso foi o que você provavelmente ouviu no colégio. Essa descrição definitivamente não sintetiza o contexto e a complexidade da geopolítica e do élan histórico mundial do período, mas não deixa de conter rudimentos de uma situação bastante sólida e clara que estava posta no momento: dois gigantes se digladiavam e consequentemente os países centrais dos dois regimes se tornaram referências ou vitrines para que fossem avaliadas as peculiaridades de cada projeto de sociedade.

Mel para os ursos, livro de Anthony Burgess publicado em 1963, foi cozido nesse caldo. A constituição da trama, a disposição e a escolha de representatividades dos personagens demonstram como o autor buscou explorar o tema a seu modo, procurando não só colocar em questão algumas das supostas “verdades estabelecidas” sobre esse período, como também explorar a veia cômica de sua literatura, que pouco transparece na sua mais conhecida obra, Laranja mecânica.

O livro inicia-se com a travessia de Paul Hussey e sua esposa Belinda a bordo do navio Isaak Brodsky, para a União Soviética. O casal leva na bagagem uma porção de vestidos, além de diversos produtos tipicamente burgueses, cuja fabricação era rara nos domínios russos, com vistas a vendê-los no mercado negro de artigos capitalistas.

Se a travessia correra de acordo com as expectativas dos dois, a estadia em território soviético não começou bem: Belinda caiu convalescente por conta de erupções cutâneas em seu corpo; e Hussey, apesar de compartilhar do companheirismo russo num primeiro momento, vem a encontrar problemas com a polícia posteriormente, seja pelos atos que praticou durante sua estada lá, seja por conta dos artigos que trazia na mala, que poderiam desestabilizar a economia soviética.

Ocorre que Paul entra numa mini-odisséia por diversas localidades soviéticas: bebe Vodca com alguns companheiros que lá encontrou, satisfaz sua curiosidade conhecendo o compositor Opinski e enfrenta uma crise conjugal em que a Dra. Lazurkina, a médica que cuidava de sua mulher convalescente, tem papel importante. Ele encarna várias das visões de Burgess sobre o que ocorria do lado de lá da fronteira soviética.

Burgess brinca com os estereótipos construídos sobre ambos os lados da cortina de ferro, procurando matizar as hipérboles e desconstruir certas visões estabelecidas sobre ambos os sujeitos e suas crenças ideológicas. A célebre imagem da Rússia misteriosa, envolta em brumas (cuja brincadeira internética “reversal Russia” é um de seus desdobramentos) convive lado a lado com a imagem reverente aos russos companheiros, humanos e camaradas, dados a conversas e histórias e profundamente comprometidos com os ideais soviéticos.

Quando se trata do “lado de cá” da cortina de ferro, Burgess faz ficarem lado a lado a imagem dos capitalistas como gananciosos e desumanos, e as peculiaridades da assim chamada economia de livre mercado, onde uma porção de regulamentações típicas da economia estatizada soviética inexistem. A imagem construída sobre ambos os lados dialoga com os estereótipos, mas não vai muito além deles.

Ao que parece, Burgess manifesta uma simpatia um pouco maior para a porção oriental da cortina de ferro, o calor que brota dos russos apesar dos invernos congelantes agrada mais ao autor. Isso se dá inclusive em nível filosófico, já que ao traduzir suas opiniões em literatura, ele dialogava com uma porção de signos existentes sobre ambos os países. Tendo em vista ainda os valores que o autor perscruta em outras de suas obras, pode-se imaginar o impacto e a impressão que lhe causaram as distinções da situação de onde vivia e da terra com a qual mantinha contato de outras formas.

Como se pode perceber no livro 1985 e também em Laranja mecânica, a liberdade (às vezes aparecendo sob as vestes de livre-arbítrio) ocupa posição privilegiada na obra de Burgess, e não deixa de ser explorada também em Mel para os ursos. Ela aparece no livro através dos questionamentos acerca das liberdades individuais dos sujeitos perante as preocupações sociais e coletivas da União Soviética. Por mais que o “espírito coletivo” que transparece nos vários personagens russos delineie uma preocupação com o todo maior do que consigo mesmo, não se pode deixar de notar que existam outros que estão dispostos a sacrificar motivações coletivos em nome de interesses particulares, afinal, os artigos contrabandeados por Paul tem vários compradores em potencial.

Por mais que Burgess acalente em alguns momentos quimeras de liberdade idealizada, ele consegue equilibrar-se na corda bamba entre dois horizontes ideológicos. Talvez isso seja o motivo do livro ser morno: ele tem medo de arriscar aprofundamentos maiores, de modo que, se defensores do capitalismo ou entusiastas do comunismo lessem seu livro, tenho certeza que encontrariam tanto motivos para irritarem-se quanto para serem tolerantes, quiçá até identificarem-se.

É difícil permanecer sobre o muro com tensões tão evidentes, contraditórias e viscerais.