Quando comecei a ler Hell’s Angels (1966), fiquei imaginando que tipo de abordagem encontraria e qual seria a credibilidade do autor para falar de algo tão controverso e polêmico quanto esse assunto. Pois bem, descobri que Hunter S. Thompson tem sim propriedade suficiente para falar sobre os Angels, já que ele passou um período entre eles, participando, com diferentes níveis de intensidade, das pilhagens, bebedeiras, jornadas, brigas e todas as outras atividades que esse clube de motoqueiros realizava Estados Unidos afora na década de 60.
Hunter Thompson é um dos pioneiros do chamado “Jornalismo Gonzo”, uma modalidade de jornalismo caracterizada por uma despreocupação com objetividade, quiçá uma pretensa “neutralidade”. No “Jornalismo Gonzo” o autor das matérias se encontra no meio dos acontecimentos, sendo, portanto, influenciado de maneira muito mais forte pelos eventos que está reportando.
Tendo conhecimento do processo que Hunter Thompson adotou para escrever, descobrimos que Hell’s Angels está muito mais para relato jornalístico do que para Literatura propriamente dita. Porém, o fato de ele restringir-se mais a relatar do que elaborar literatura (ao contrário do Steinbeck, por exemplo, que mesmo andando na rota 66 e conhecendo retirantes e hoovervilles teve uma produção que puxa mais para a Literatura do que para o jornalismo, embora ele fosse jornalista), faz com que o livro se constitua num documento que agrega uma riqueza de material da época e dos próprios Hell’s Angels, usando “recursos jornalísticos”, digamos assim, a seu favor.
Assim, o autor consegue englobar no livro depoimentos de policiais, cidadãos comuns e Angels; discursos de políticos e autoridades acerca desse fenômeno; matérias jornalísticas, manchetes relatando ataques e incidentes envolvendo os motoqueiros etc. Justamente nesse sentido é que Hell’s Angels se torna sólido. Como consta na contracapa da edição da L&PM, Hunter Thompson estava no “olho do furacão”, seus escritos foram feitos no calor da contenda, na tensão do momento.
Através do relato do autor, ficamos conhecendo não somente dados e discursos da época, mas também o estilo de vida dos Hell’s Angels, tudo isso com um prisma de alguém cuja vivência cotidiana é entre esses motoqueiros. Capacetes nazistas, suásticas, jaquetas de couro sem mangas, hogs depenadas e envenenadas e o famoso emblema da caveira alada com capacete são apenas alguns dos símbolos e artefatos que Thompson analisa.
Além disso, o autor, por fazer parte dessa contracultura, e conviver cotidianamente com esses indivíduos, acabou por ser influenciado de tal modo, que nas páginas de Hell’s Angels é possível perceber uma simpatia e uma tentativa de expiar ou ao menos entender as profanações desse grupo. A campanha subjacente que ele move contra a cobertura jornalística e a visão projetada sobre os Angels deixa claro que, embora o caos seja uma constante no itinerário dos motoqueiros, isso foi espetacularizado e tratado sob uma ótica sensacionalista muitas vezes, de modo que o fenômeno Hell’s Angels fosse imiscuído em meio a discursos moralistas, vertentes sociológicas difusas e um jornalismo que buscava mais vendagem do que seriedade.
Os detalhes cotidianos narrados em primeira pessoa dão crédito à obra, mostrando em diversos trechos como essa rebeldia e o abandono de convenções sociais (e de decência em muitos casos) está ligada a todo um contexto de tensão e inadequação que motivaram outros movimentos da contracultura ou as próprias manifestações pelos direitos civis. A sociedade estadunidense, bem como a opinião pública, penaram para se adaptar as investidas dos Angels, tanto em seu aparato militar quanto na auto-consciência de que haviam problemas nesse modelo de sociedade marginalizante e desigual.
O livro causou polêmica pela subversão que representava aquele tema, que pululava nos tablóides, no cinema, na TV e no boca-a-boca. A naturalidade e a passividade que Thompson trata de coisas como bebedeiras, estupros, pilhagens, brigas e espancamentos choca, e deixa de cabelos em pé autoridades e arautos da moral e dos bons costumes, mas que evidenciam que esse gosto pelo proibido contaminou o relato do autor.
O gosto pelo ato de montar uma Harley 74 e acelerar nas auto-estradas, tem um significado especial para os Angels, quase ontológico, é uma evidência de que Thompson foi seduzido pelo estilo de vida dos barbudos motoqueiros, o de não conformar-se, desafiar limites como forma de encarar a monotonia do modo de vida a que se opõe:
Não existe nenhuma forma genuína de explicá-lo [o limite] porque as únicas pessoas que sabem onde ele está são aquelas que o ultrapassam.” (p. 337)
claro. bem proximo do que e o objetivo do autor e esse mesmo
olha como são as coisas: luciano e tiago tinham comentado sobre o thompson uma vez, fiquei com vontade de ler, mas esqueci de procurar livros dele na época. aí estava com fear and loathing in las vegas aqui em casa, mas não liguei o nome do autor ao livro pq, bem, tinha esquecido que era ele. e agora com sua resenha lembrei, e fear and loathing subiu na lista nas prioridades literárias hehehe
@Anica
O “Fear and Loathing in Las Vegas” tem um filme de 1998 que é até bem famoso (http://www.imdb.com/title/tt0120669/), e tem direção do Terry Giliam, o que é alguma coisa.
Fiquei curioso com esse livro também. Entra no esquema do “Jornalismo Gonzo” também?
eu não gostei do filme quando vi, mas tb não tinha sacado o contexto. pelo que fui fuçar, fear e loathing é justamente o trabalho dele que lhe dá o título de “pai do jornalismo gonzo” ^^
A expressão “jornalismo gonzo”, na verdade, foi inventada pelo próprio Thompson no Medo e Delírio. É uma espécie de ramificação do chamado New Journalism, daquela turma que inclui Tom Wolfe, Gay Talese, Truman Capote e Norman Mailer. Thompson, ou Raoul Duke, era um expoente menos comportado dessa escola.
Medo e Delírio em Las Vegas é seu melhor livro. O cara vai para a terra do jogo com o objetivo de cobrir uma corrida de motos, mas se entope de drogas e faz uma grande “trip” pela cidade. E, claro, não consegue cobrir a tal corrida. Isso, aliás, era um costume do pai do gonzo. O exemplo mais famoso aconteceu quando ele não cobriu a chamada luta do século, em 74, entre Ali e Foreman, no então Zaire, porque estava chapado na piscina do hotel.
Essas e outras histórias são contadas no livro “A Grande Caçada aos Tubarões”, que talvez possa ser encontrado em uma boa livraria. É uma reunião de artigos dele e tem até um (meio preconceituoso) que foi escrito quando o cara veio no Rio de Janeiro e visitou a Praia de Copacabana.
O mais interessante, porém, tanto de Hell’s Angels e Medo e Delírio é a análise que o Dr. Thompson faz da sociedade americana, algo um pouco menos evidente no bom filme do Terry Gilliam. Com uma ironia ácida, ele capta com maestria as reações horrorizadas daqueles ianques que se encaixariam muito bem na filosofia Tea Party ao aparecimento de hippies e outros malucos no fim da década de 60. Vale a pena.
Para saber um pouco mais sobre o Dr. Thompson, uma boa dica é ver o filme Gonzo, um documentário lançado há uns três anos sobre o jornalista. A narração é de Johnny Depp, que foi Thompson em Medo e Delírio. Outro bom filme é “Uma Espécie em Extinção”, em que Bill Murray faz o papel do Doutor.
Também existem outros livros dele por aí. Um se chama Screw Jack, que é uma grande viagem e já não é lá essas coisas. Esse é quase uma previsão de seu suicídio, em 2005. Uma pena para o jornalismo, que, com certeza, precisa ser um pouco mais gonzo nesses tempos de inúmeros portais de notícias e matérias superficiais.
@João Noé
Putz, valeu pelas informações, você está bem por dentro dessa escola de jornalistas, e que legal colocar nesse mesmo rol nomes como Capote e Mailer, certamente dá mais peso ao “estilo”.
O que você descreve no quarto parágrafo é algo bem caracterizado no livro: uma tentativa de compreender os Angels a luz do contexto, questionando-se sobre o porque da escolha por aquele estilo de vida desregrado, maluco e desafiador que eles adotaram. O contraponto que ele vai fazendo com os tablóides e opinião pública da época somente vem a reforçar essa análise. Thompson devia sentir-se bem estando “do outro lado”, vendo as coisas por outro ângulo, e justamente por conta do “jornalismo gonzo”, acabou dando uma base diferencial ao que escreveu, ele não era mais um arauto da moral pudica no meio de uma multidão de outros iguais, mas sim uma voz dissonante nesse turbilhão que foi a década de 60.
Pois é, está faltando um pouco de “gonzismo” no jornalismo de hoje em dia, ainda mais ao contrapôr esses discursos tão recorrentes de neutralidade e imparcialidade, que dão um verniz de “verdade absoluta” às matérias, coisa que precisa ser descontruída e analisada dentro da “paisagem” política-econômica-etc. mais ampla, acho que orientar-se um pouco mais pelo “jornalismo Gonzo” cairia muito bem.
Muito esclarecedor o post e os comentários! Adorei!
COMPREI ESSE LIVRO SEM QUERER NUMA LIVRARIA, BAITA LIVRO!
fuja!