A visão do espelho por trás do largo óculos Ray-Ban dourado mostra um cabelo quase com vida própria num penteado meio Pica-Pau. Fecho um pouco os olhos para olhar as entradas que, sim, estão visivelmente se infiltrando mais a cada dia e nesse momento sinto o peso carregado pelos personagens de algumas obras do novelista norte-americano Ray Bradbury. O revolucionário de Farhenheit 451, os colonizadores de As Crônicas Marcianas, Charles Halloway, de Algo Sinistro Vêm por Aí.

O que todos eles têm em comum é um sentimento de vida mal vivida – um ponto entre o desperdício e a felicidade trivial -, e se veem em um ponto sem volta. Não que eu me sinta assim, mas não cheguei na idade deles.

Montag prefere abandonar tudo para conservar livros; os terráqueos vão para Marte como antes os europeus, cheios de sonhos ou expulsos como párias de suas terras, foram às colônias do Novo Mundo; Halloway, mais um coadjuvante, precisa ajudar seu filho Willy e seu melhor amigo Jim a lutarem contra um Parque de Diversões maldito e sua trupe de bruxos e aberrações enquanto lida com a decadência do sonho americano, o envelhecimento sem a grandiosidade da juventude.

Travestido de conto de horror, na verdade Algo Sinistro… trata da vivacidade humana, de sua unicidade. Enquanto Halloway, que quer correr como o Coelho Harry Angstrom, observa seu filho e seu melhor amigo trotarem pela cidade de cima da torre da biblioteca municipal, de onde é zelador, imaginando uma vida anterior na qual ele também tinha forças para jogar os cabelos contra o vento sem o peso de voltar para casa ao anoitecer, sem ter que reprimir o desejo de pular a janela no meio da noite para visitar as praças vazias, os cemitérios da cidade, sua própria biblioteca, onde ele vive quase exilado na maturidade.

Toda a simples narrativa – o romance tem trezentas páginas, e a Bertrand Brasil ofereceu uma fonte de tamanho generoso ao livro – é construída através de dualidades. Willy é o garoto bom, ingênuo; Jim é seu yang. O parque seduz oferecendo juventude aos velhos, e maturidade aos jovens, em transformações realizadas em pleno carrossel.

O horror é tratado mais como realismo fantástico, sem exageros sensitivos, mais construído através da palavra e seu efeito na imaginação. Os monstros são clássicos – a bruxa, o esqueleto, o homem na cadeira elétrica, a mulher mais bonita do mundo – e isso facilita a assimilação.

Bradbury é sutil, trabalhando com pequenos capítulos sempre ligados por pequenos ganchos, frases soltas, uma ânsia de virar a página, a vontade infantil de passar toda uma tarde ocupado naquela leitura. De certa forma, adaptar a velocidade da narrativa ao tempo das histórias é a maior característica do autor, que calmamente, romance após romance, transcendeu o século XX e viu o século seguinte, tão idealizado por companheiros literários, chegar.

E pensando nisso entendo o que Bradbury sempre quis dizer. A vida pode dar errado de vez em quando, mas você não pode pensar que ela foi mal vivida, nem que foi sua única chance, aconteça o que acontecer.

Sobre o autor: Artur Tavares é um dos diretores da HQM Editora, responsável por trazer Os Mortos-Vivos (Walking Dead) para o Brasil. Divide seu tempo livre entre as histórias em quadrinhos, textos para a página Jovem do iG e a produção de um programa mais ou menos sério na MTV Brasil. Você pode encontrá-lo no @arturem e Facebook.

BRADBURY, Ray. Algo Sinistro Vem Aí Por Aí. Bertrand Brasil. 294 págs. Preço sugerido: 39,00

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