O amor ganha diversos significados ao longo dos anos, uns descrevem a sensação de um coração palpitando enquanto outros citam o pensamento contínuo em relação a pessoa amada. As consequências estão entre o casamento, o término, a traição e a morte. Por mais que se fale de amor o que se desenvolve em histórias sobre esse sentimento é precisamente sua trajetória, começo, meio e fim (cheio de reviravoltas, é claro). Todavia, a história de um tenor que, ao viajar de trem, se interessa pela fisionomia das três pessoas com quem divide cabine, e logo em seguida os encontra, relata o amor de diversas formas e ao mesmo tempo: sonhos, anseios, realidades, pesares, versões, da companhia, da solidão.

Leão de Napoles é o nosso narrador nessa noite de ópera, o tenor estava na cidade de Madri quando tudo aconteceu. Ele conheceu Manur, sua mulher Natália e o acompanhante contratado pelo banqueiro para ficar com sua mulher, Dato. O Homem Sentimental, lançado pela Companhia das Letras em 2004 com tradução de Eduardo Brandão, de Javier Marías – que ganhou diversos prêmios e é membro da Real Academia Espanhola – é outro exemplar fascinante da bibliografia do autor espanhol com outra abertura incrível, onde uma simples viagem de trem torna-se um retrato detalhado com exatidão no imaginário do leitor – tanto nas descrições fisícas quanto na respiração das personagens e até no que o narrador está sentido.

O cantor madrilenho volta a sua cidade natal para algumas apresentações da ópera Otello de Verdi, onde, ironicamente, ele representa o papel de Cássio. Para o tenor as cidades são um terrível coletivo de anônimos e Madri é o centro desse significado. Cantores se igualam somente aos vendedores e entretanto esses últimos tem um estranho destino de sempre cometer alguma loucura – cheia de sangue e gritos – num hotel de luxo. O cotidiano, a rotina, a falta de mistério dentro das ações diárias tornam as pessoas meramente belas ou meramente feias. A graça está em como algumas conseguirão esconder em sua alegria apática, segredos e paixões inesperadas.

O que o surpreende é que dessa vez um sujeito com a fisionomia sempre aberta e simpatica senta-se ao lado do tenor o lembrando da viagem de trem que fizeram juntos. Após uma rápida introdução sobre quem é (Dato) e o que faz, o gentil homem abre seu coração com todas as devidas proporções e também abre caminho para que o Leão de Napoles conheça Natália, sua paixão neste pequeno diário de rememoração.

O transcorrer da história é mais importante do que saber como ela começa ou termina, entre várias divagações do tenor – como sua infância numa cidade inóspita como Madri, os sonhos que tem, da solidão que sente em suas viagens (lembrando que apesar de estar cercado por pessoas, algumas conhecidas que se tornam desconhecidas ao menor toque) – , sabemos que a paixão, ou romance, entre ele e Natalia já terminou e é exatamente com isso que é possível descrever o amor, pois esse sentimento visceral só existe em lembranças e, na pior das hipóteses, num projeto futuro. Manur, marido de Natalia, representa um ser imponente, explorador, um verdadeiro político sem sentimentos, apenas com conquistas – não aquelas que conhecemos como parte de um flerte e simpatia, mas toda aquela que representa um poder de dominação, de tomada. Dato é a ligação das aparências e do verdadeiro eu de cada um, ele é confidente, delator e subalterno. Ele representa três papéis em todos os atos. Natalia é feérica o mistério que faltava no amor de Leão com sua namorada Berta, uma incrível, porém insossa mulher. A senhora Manur é o sentimento que o tenor precisa retirar do mundo fantasioso, se é que é possível, para o mundo real.

Javier Marías consegue mais uma vez tornar algo, que já fora muitas vezes dissecado com palavras e agora com suas minuciosas descrições, numa avalanche indescritível. O leitor ao se deparar com a história do tenor não partilhará da solidão ou melancolia impregnadas nas páginas, poderá respirar fundo e reler quantas vezes for necessário para reviver uma trajetória como essa: estupidamente consciente e humana.