Guerra aérea e fotografia

Por muito tempo lutei com Os anéis de saturno, romance de Sebald disponível no Brasil há um bom tempo. Tentei ler uma vez. Parei na página 40. Tentei ler uma segunda. Parei na página 100. Um amigo me contou que a edição que eu lia era ruim, pois tinha uma tradução péssima de Lya Luft. Como não falo uma só palavra de alemão (mentira: Achtung! Zeitgeist!), não pude concordar ou discordar. Já outro disse que não havia nada de errado na tradução de Luft, que ela era exceletne. O problema é que Sebald não era para mim. Então abandonei W. G. Sebald por mais de ano – achando que o elogiadíssimo escritor alemão era um chato de galochas.

Fast-forward para o presente. Lançam Guerra aérea e literatura (Companhia das Letras, 2011, 136 pg.) no Brasil. Baixo no Kindle um sample (o aparato tem essa função de downloadear um “primeiro capítulo” de amostra. Interesso-me instantaneamente pelo título (que em inglês é: On the natural history of destruction) e pela proposta: conferências que o autor alemão deu acerca do fato de que não houve um “eco literário” nas letras alemãs dando conta dos horrores presenciados pela população na época dos bombardeios dos aliados.

Sim, pois é verdade: nós, leigos, estamos acostumados a pensar, ainda que de forma inconsciente, na Segunda Guerra como: “maldades de Hitler” + “retaliação dos aliados”. Sim, sei que fui radicalmente simplificador, mas pense: “Segunda Guerra”. O que vem em mente? Auschwitz. E depois: Dia D, fim do Terceiro Reich. Claro, talvez pensemos nos milhões de russos que morreram no campo de batalha. Em Pearl Harbor. Em Hiroshima e Nagasaki. E os bombardeios nas cidades alemãs? E Dresden e Hamburgo e os milhares de civis mortos? Bem – ao menos os alemães devem lembrar disso. Mas, de acordo com a hipótese de Sebald, houve uma gigantesca amnésia coletiva.

Portanto, em Guerra aérea e literatura, Sebald mapeia, ao mesmo tempo, os horrores dos bombardeios e o retrato destes na literatura – retratos escapistas, mistificantes, floreados. Ou pior: a ausência de qualquer tentativa de retratar, simbolizar, mimetizar, representar.

E pronto. Estou convertido ao Sebaldismo. Não acho mais Sebald um chato de galochas. Mas há algo que ainda não entendo completamente. O uso de fotografias, recurso presente em todas as obras de Sebald das quais tomei conhecimento. Mencionei antes que comecei a ler o livro no Kindle – e desisti e migrei para a edição brasileira em papel por um motivo. Pelas fotos (que ficam pixeladas no e-reader).

No momento mais marcante do livro, Sebald fala da destruição de Hamburgo, de corpos queimados e do que acontece com um organismo que sofreu temperaturas impensáveis. Junto dessa descrição, há uma foto de corpos queimados. Juro que não entendo o motivo dessa foto. O ditado diz: “Uma foto vale mais do que mil palavras”. Meu querido ditado, você não conhece as mil palavras de Sebald. A descrição de Sebald é muito mais impressionante do que qualquer foto. As fotos de Sebald servem para quê? Provar que algo aconteceu? Ao falar de Alfred Andersch (escritor que consegue humilhar com uma mera epígrafe no início do capítulo), por exemplo, anexa a foto de uma carta escrita pelo autor. Precisava? Que informação a mais aquela carta nos dá? Olhar a caligrafia do autor tornará tudo mais presente, vivo? Não sei. O uso de fotografias em Sebald ainda é um enigma para mim.

A inclusão de fotografias na literatura é um artifício razoavelmente comum na produção contemporânea. Penso em dois autores que se valem bastante disso. Javier Marías, em Seu rosto amanhã, interrompe a narrativa para mostrar pôsteres antigos sobre os riscos de contar um segredo para outra pessoa durante a época da espionagem de guerra. É uma quebra curiosa, que tampouco entendo. Já o mexicano Mario Bellatin, em Los fantasmas del masajista, narra a história de um massagista especializado no tratamento de pessoas sem algum membro do corpo e sua mãe declamadora de rádio. Ao final da novela, inicia-se uma série de fotografias coloridas mostrando o que seria cada coisa: “a clínica”, “a mãe do massagista” etc. Este suplemento fotográfico ressignifica tudo o que foi lido anteriormente. Dá uma imagem (geralmente distorcida, bizarra, ou até cômica) para as palavras. Agora as palavras existem também em um plano imagético, concreto, mas que não revela nada. Bellatin não é um partidário da “verdade”: suas fotografias não encerram as palavras, não mostram “ó, foi assim”. Pelo contrário: escondem mais, tornam tudo ainda mais opaco e misterioso.

E as fotos de Sebald? Não entendo ainda. Acho que vou ter que continuar lendo o autor. Assim começam as crônicas de um recém-convertido ao Sebaldismo.

Título: Guerra Aérea e Literatura

Autor: W. G. Sebald

Tradutor: Carlos Abbenseth e Frederico Figueiredo

136 páginas

Preço: R$ 39,00