Amores Expressos é uma série que levou diversos escritores para as mais variadas metrópoles do mundo e a partir dessas viagens, esse laboratório, os autores devem criar um romance situado no ambiente em que estiveram. Dessa ideia surgiram os livros, todos lançados pela Companhia das Letras, Cordilheira (Daniel Galera), O Filho da Mãe (Bernardo Carvalho), Estive Em Lisboa e Lembrei de Você (Luiz Ruffato), O único final feliz para uma história de amor é um acidente (J.P. Cuenca) e Do Fundo do Poço Se Vê a Lua (Joca Reiners Terron), a história de um homem que desembarca na arenosa Cairo em busca de seu irmão gêmeo.

Este é William, um homem forte, barbudo, taciturno e calado que aparenta não saber o que ocorre ao seu redor no Cairo, onde acaba de desembarcar. Ele está em busca de seu frágil, inteligente e feminino irmão, Wilson, que desapareceu de São Paulo e lhe enviou um postal após longos anos. Todavia, Wilson não é mais Wilson, ele agora é uma mulher, ele agora é ela e descende da rainha egípcia Cleópatra.

Aparentemente tudo está fora do lugar para William nesse novo ambiente e ele se sente perdido, o que já ocorrera com seu irmão/irmã desde o nascimento dos dois. Sua busca será entrelaçada por idas e vindas no tempo, recheada de insights, lembranças verdadeiras ou forjadas, trechos de diário, violência e sexo e o deslocamento desde o primeiro nascimento de Wilson que não culpa Deus por sua condição, mas a genética, a natureza (que desempenha um papel importante e mutante na história: sendo Lua, deserto, chuva, etc.).

Toda essa história é detalhada pela nossa narradora – antes talvez fosse um narrador ou nunca fora – que desdobra em teorias físicas, médicas, artísticas e mitológicas para explicar a tragédia que envolve os gêmeos além da troca entre terceira e primeira pessoa. Porém, o próprio destino resolveu separá-los e uni-los sem prévio aviso, como se tudo fosse uma comédia e uma tragédia grega. Cleópatra nunca se considerou um menino. Ao descobrir o armário de sua mãe, sua obsessão por vestidos, maquiagens e por Elizabeth Taylor se torna crescente assim como seu poder aguçado de perceber que, apesar de gêmeos idênticos, os dois – William e Wilson – nunca foram os mesmo ou sempre foram. Seu nome de batismo após seu renascimento – a troca de sexo e de cidade e país – expõe essa obsessão.

A ambivalência narrativa entre o ser ou não ser, entre a afirmação e a narração, intercepta a atenção do espectador: onde tantas teorias poderiam nos levar? O que ocorreu de tão grave para que esses gêmeos se separassem? As revelações em pílulas, ora São Paulo multicultural nos anos 80, ora na Cairo decadente dos anos 2000, entrelaçam com fatos que engolem diversas pessoas cercadas por uma coincidência cretina e bizarra da vida desses gêmeos.

A semelhança é tão gritante que os dois poderiam trocar de lugar como os gêmeos Aureliano Segundo e José Arcádio Segundo. Os dois irmãos de Macondo podiam muito bem ter trocado de identidade durante a vida, de tantas vezes que suas histórias em brincadeiras pueris permitiram e que nunca mais souberam se eram eles mesmos ou o irmão. Todavia, a igualdade e similaridade, de Wilson e William se iguala ao filme de 1988 Gêmeos – Mórbida Semelhança de Cronenberg, onde tudo era partilhado: memórias, sentidos e destinos. Ou poderiam ser Caim e Abel – afinal, se Wilson quis matar sua semelhança com William não seria ele assassino (ou suicida) da outra parte de sua alma e corpo? Provavelmente os dois sempre se parecem a todos esses e ao mesmo tempo em nada.

Uma tragédia apresentada com diversas intervenções do destino – regido pelos deuses ou pela natureza ou pelo homem –  e com um humor impecável e pontual. A narrativa de Joca Reiners Terron é irrepreensível e saborosa, palpitando diversas imagens abstratas e reais – misturadas e separadas – na imaginação do leitor, que cairá da Lua, direto para o deserto e mesmo assim se encantará com uma história que não poderá ser separada em duas, três ou quatro, mas em incontáveis e ao mesmo tempo única.