Como uma história começa? Quais são os fatos que direcionam vidas e mudam decisões? E se você tivesse tomado outra atitude? Perguntas como essas não faltam em “Mosca Espanhola”, romance de Will Ferguson. Toda a história é narrada na voz de Jack McGreary, que lança suas memórias desde a infância até o momento atual de sua vida. Entre um acontecimento e outro, a personagem analisa cada particularidade das situações e se inunda de perguntas, seja elas sobre a ordem dos fatos, comportamento humano, religião ou sobre si proprio.

Mosca Espanhola é um livro sobre golpes e a relação de Jack com a prática de trapacear. A narrativa se passa nos Estados Unidos do fim da década de 20 e 30. Desde garoto, Jack, que vivia em Paradise Flats se interessava em literatura e tinha uma peculiar “habilidade” em identificar os golpistas que rodeavam o local. Ovídio e Pascal foram parte da inspiração para afiar a mente do rapaz, que, como o próprio livro descreve e compara, acabou por ganhar um olho em terra de cego. Só que nesse caso, ele não seguiu o dito popular e virou rei, mas sim escondeu o seu trunfo.

A história se divide em quatro partes: Um parque de diversões no deserto, Jittersburg, Gatos e Ratos e A aposta de Jack. Todas elas relacionam Jack com a prática do golpe em alguma proporção. “Um parque de diversão no deserto”, por exemplo, vai falar dessa fase em que a personagem entra em contato com a literatura e começa a praticar alguns pequenos golpes, mesmo que ainda tenha algumas “desculpas justas” para fazê-los. O leitor também fica conhecendo sobre a relação de Jack com o pai, morte de sua mãe, Grande Depressão dos EUA e as terríveis secas e tempestades de areia que levaram Paradise Flats a enfrentar tempos difícieis. Com excessão do primeiro capítulo, que mostra o momento presente de Jack, todos os outros vão decorrer sobre o passado.

Um dos momentos que mais gostei dessa parte, é uma passagem em que Jack resolve começar a ler o dicionário para decorar palavras, mas, de repente, uma delas tira totalmente sua concentração e o deixa extremamente pertubado: Amoral, na seguinte definição “nem moral, nem imoral; fora dos limites da esfera de julgamento”. Jack vai buscar, em todas as suas ações de golpe, seguir esse princípio e transmití-lo. Essa palavra é a definição do que ele busca, mesmo que ele reconheça que ser amoral, ou seja, ter todas as suas ações fora de um limite de julgamento é, em suas condições, quase utópico.

Na minha opinião, “Um parque de diversão no deserto” é uma parte vital para o leitor entender a formação da personagem, e até mesmo torcer e apoiar seus atos de trapaça, mas acredito que “Jittersburg” empolga a leitura e, junto com as outras duas partes finais, vai dar ritmo e ação. Jitterbug significa “dança em ritmo bem acelerado em que o casal az vários passos malabarísticos” e se inicia no momento em que Jack se junta a Virgil e Rose para aplicar golpes em conjunto. Os três seguem sempre um lema: Não é trapaça (nem muito menos roubo) se a pessoa der o dinheiro de livre e espontânea vontade.

Além deste lema, eles também seguem um princípio básico para todos os golpes: O ser humano funciona a base de medo e ganância. Até o pai de Jack apresenta esses traços como no trecho “Papai não precisava de uma garrafa para ficar embriagado, precisava apenas da visão de um navio cheio de ouro se aproximando, as velas enfunadas pelo vento”. Então, basicamente, os golpes vinham com algum elemento que deixasse a vítima com medo seguido da promessa dela ganhar muito dinheiro. Era a combinação perfeita.  “Jitterbug”, é uma parte da narrativa acelerada, cheia de ação e trapaças. Nesse momento, a realidade de Jack muda completamente para uma vida cheia de jazz, bebidas e perigo.

As duas últimas partes são dedicadas ao grande golpe que dá título ao livro e todas as suas conseqüências. Mosca Espanhola é conhecido por ser um afrodisíaco. Essa característica é inspiração para o golpe, que abusa de mais uma característica comum a quase todos: o orgulho.

Com tudo isso, posso dizer que Mosca Espanhola é um livro que eu recomendo. A leitura é cheia de ação e os personagens são muito bem desenvolvidos, de forma que a narrativa não trata somente de golpes, mas sim da natureza humana passando por sentimentos como instinto de oportunidade, sobrevivência, ganância, companheirismo e medo. Além disso, os pensamentos de Jack e como ele aplica obras como “A Arte de Amar”, de Ovidio, para sua vida, tornam o livro ainda mais rico e interessante. A obra é cheia de referências e reflexões e quando o leitor já teve algum tipo de contato com os livros citados na narrativa, a experiência se torna ainda mais íntima e fascinante.

Saiba mais sobre essa e outras obras no site da Companhia das Letras

Título original: Spanish Fly

Autor: Will Ferguson

Tradução: Celso Mauro Paciornik

Páginas: 424

 

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