Imre Kertész é mais conhecido por Sem destino, seu testemunho a respeito do Holocausto. Foi assim, aliás, que eu o conheci. Mas não é tudo que ele escreveu, obviamente. Apenas esse testemunho – por mais forte que seja – não seria suficiente para o reconhecimento que ele tem. Em seus outros livros, porém, se não fala sempre da Shoah, ele está às voltas com totalitarismos e com a violência e suas consequências.

Não se deve crer, no entanto, que Kertész é um escritor panfletário. Ele não busca converter ou convencer ninguém de nada: suas narrativas são relatos pessoais. Ele fala, antes de mais nada, sobre a dificuldade de se viver nesse mundo sabendo o que aconteceu e tendo sobrevivido a isso. Se Heidegger indagou sobre a possibilidade de se escrever poesia depois do Holocausto, Kertész indaga sobre a possibilidade de se viver (e, mais ainda, de se viver em liberdade) depois do Holocausto. Tudo isso é bastante claro em A bandeira inglesa, volume composto de três contos, lançado por aqui pela editora Planeta, em tradução de Cláuda Abeling.

O primeiro conto,  homônimo com o livro, trata de um ex-professor que, reunido a alguns amigos ex-alunos, se lança a narrar uma história que lhe pedem: a história da bandeira inglesa. Isso, no entanto, é mais difícil do que parece: essa história se passou muitos anos antes e não aconteceu com ele exatamente, mas com um jovem que, então, ele acreditava ser. Para livrar-se dessa dificuldade, o ex-professor precisa de outras histórias, que precisam de outras histórias. Vê-se, então, numa história enovelada na qual os fatos propriamente ditos são menos importantes do que o modo como ela é contada e do que os motivos pela qual ela é contada.

Segue-se o conto “O buscador de pistas”. No começo parece que o protagonista será Hermann, homem que está sendo entrevistado por um outro, sem nome, em busca de algo que não sabemos exatamente o que é. São resquícios de um passado, de uma tragédia, pela qual Hermann teme ser considerado culpado. O foco, no entanto, logo se descola do solícito Hermann para seguir esse homem sem nome. A tal tragédia é, afinal, parte de seu passado e ele não pode fazer nada a esse respeito – a não ser buscar as pistas que lhe permitam, de alguma forma, viver.

Por fim temos o conto que me parece mais doloroso: “Depoimentos”. Nele Kertész coloca-se como a personagem central. A ação se passa nos primeiros anos após a queda do comunismo na Hungria e o escritor decide viajar à Viena. Carrega, no entanto, 4000 xelins em dinheiro e declara, por motivos que nem ele sabe, apenas mil. Isso lhe gera problemas com o fiscal alfandegário húngaro e o leva a pensar sobre toda sua vida, sempre submetida às arbitrariedades do poder. Lembrando de citações e fatos de seus outros livros, em especial d’O fiasco, Kertész conclui a inexistência da liberdade – mas com um alento de esperança (mesmo que assumindo formas um tanto grotescas) ao constatar que, em alguns soldados, existe amor.

A bandeira inglesa foi, para mim, ao mesmo tempo surpreendente e previsível. Previsível pois eu já esperava esses temas e essas formas de Kertész: acredito, não sem um laivo de orgulho e prepotência, ter adquirido certa intimidade com sua escrita. Por outro lado sua escrita é sempre surpreendente e dolorosa, conseguindo generalizar o grotesco e o absurdo do mundo a partir de experiências extremamente íntimas e, até, (aparentemente) distantes da realidade em que se vive no ocidente hoje.