Com muita empolgação e um pouco de barulho, o livro do crítico inglês James Wood, Como funciona a ficção, se acomodou bem nas estantes das livrarias brasileiras. Crítico titular da muito prestigiada revista The New Yorker, Wood se firmou como uma importante referência. Na edição brasileira, a orelha e a quarta capa do livro dão a medida do entusiasmo: Milton Hatoum, Martin Amis e Gonçalo M. Tavares exaltam o autor e seu livro.

A despeito da polêmica relativa à sua tradução, a recepção da obra foi muito boa. O exemplo máximo de reverência talvez seja o da revista Língua portuguesa (n. 67, maio de 2011), que traz em página dupla um pequeno texto elogioso e escusa-se de resenhar ou criticar o livro, limitando-se a publicar excertos para que o leitor possa ter uma ideia do que seja “um texto chamado James Wood”. A única voz dissonante foi a de Flora Süssekind, cuja resenha publicada no jornal O Globo (12/mar./2011) ataca o pragmatismo crítico e o potencial limitado da obra.

Ficção e realidade. É inegável que o livro seja interessante. Muito eclético, trata de autores canônicos (p. e. Shakespeare, Homero) e contemporâneos (p. e. Bolaño, DFW) sem diferença de escala e os lê com os mesmos critérios de análise estilística. Embora não dê os devidos créditos, apresenta pontos de vista sofisticados, como a defesa do estilo indireto livre e a valorização do detalhe no texto literário.

Uma ideia-força do livro é a defesa do escritor francês Gustave Flaubert. Para Wood, o autor francês “estabeleceu o que a maioria dos leitores e escritores entende como narrativa realista moderna […]”, longeva e dominante. Em resumo: “tudo começa com ele”.

Mas Wood empreende um tipo de leitura que encerra os livros em suas próprias páginas, como se a compreensão da obra prescindisse da compreensão do contexto em que ela foi escrita.

Detalhe. Georg Lukács, cuja obra Marxismo e teoria literária ganhou nova edição recentemente, via um elemento dinâmico em Balzac ou Tolstói, por exemplo, quando o assunto era descrição literária. Esse tipo de observação é ignorado por Wood, ele defende a importância do detalhe no texto literário por este trazer vida à narrativa, além de deleite estético. O detalhe, pinçado pelo olhar cuidadoso do narrador, é destacado como um recurso descritivo distintivo do romance moderno e, se bem escolhido, responsável por passagens literárias memoráveis.

Essa defesa do detalhe flaubertiano desvela uma visão de literatura absolutamente desligada da realidade social. Flaubert pôde desenvolver sua técnica descritiva, cujos detalhes agradam tanto a Wood, justamente por, na tese de Lukács, fazer parte de uma geração que presenciou a consolidação do poder burguês e, diante de uma dominação estável, cujo marco foram as revoluções de 1848, passou a atuar na sociedade como observador e não como participante. A capacidade descritiva do autor, no lugar da força narrativa dos que o precederam, revela a emergência de uma poderosa dominação. Isso é desconsiderado por Wood, a relação entre forma literária e processo social está fora de questão.

A defesa do discurso indireto livre também fica no meio do caminho por não alcançar (sequer chega perto) um tratamento histórico-sistemático. A epígrafe com motivos culinários denuncia: o autor trata a leitura de uma obra literária como algo similar a um banquete saboroso. Essa abordagem confere ao livro um caráter eminentemente tecnicista, o que empobrece uma boa ideia.

Como manual para aspirantes a escritores, a publicação fará muito sucesso; mas é limitada para compreensão do mundo contemporâneo ou do contexto em que obras seminais foram concebidas. Compreender como funciona a ficção sem tentar entender como funciona a sociedade é como decifrar as delicadas engrenagens de um relógio suíço e confundir as horas que seus ponteiros marcam.

Sobre o autor: João Carlos Ribeiro Jr. é bacharel em Ciências Sociais pela USP e editor.

Como Funciona a Ficção
Autor: James Wood
Tradução: Denise Bottmann
Editora: Cosac Naify
Páginas: 232
Preço sugerido: R$ 49,00