Entrevistas com escritores, biografias de autores célebres e a metaliteratura (como as narrativas em que acompanhamos um personagem escritor, em seu processo de criação literária, que, muitas vezes, desemboca justamente no livro que estamos lendo): nos três veículos, a possibilidade de encontrarmos uma confissão de angústia pela dificuldade da escrita é grande. Achar um assunto ou tema (a falta destes corresponde ao mote de metade da produção de alguns cronistas), escolher o que será transcrito, achar as palavras mais significativas e sonoras, cortar impiedosamente aquilo que “não funciona”, revisar, revisar e revisar.

O escafandro e a borboleta leva essa angústia a outro nível. Isso porque o protagonista (e narrador e autor) sofre de locked-in syndrome. Um AVC fez com que ele, após um período em coma, só conseguisse mexer o olho esquerdo. Vá lá, ele consegue balançar desajeitadamente a cabeça (uma raridade em pacientes com esse quadro). Mas isso você já sabe, pois já viu o filme: todas aquelas cenas belíssimas, incluindo o longo plano em que o olho direito – inerte e com risco de infecção, mas ainda “vendo”, por assim dizer – é obstruído pela costura das pálpebras que o envolvem. O “outro nível” a que me refiro não é exatamente uma dificuldade mental, psicológica. É um impedimento e tanto. Ele não pode pegar uma caneta, não pode digitar, não pode ditar para um escriba (ou um taquígrafo, caso se expressasse com a pressa característica de seriados como Gilmore Girls).

“E S A R I N T U L O M D P C F B V H G J Q Z Y X K W

A aparente desordem desse alegre desfile não é fruto do acaso, mas de cálculos inteligentes. Mais que um alfabeto, é uma hit-parade em que cada letra é classificada em função de sua frequência na língua francesa.”

Simples, não? Enquanto alguém recita as letras nessa ordem, ele pisca o olho quando chega à letra escolhida. Uma letra por vez.

Não sou muito afeito a essas histórias de “apesar de todas as adversidades, ele conseguia ver o lado positivo de tudo”. Mas o inusitado da adversidade (que só tinha sido representada anteriormente, na literatura, em um personagem do Conde de Monte Cristo), a beleza de sua prosa (não se enganem: não é porque havia uma dificuldade enorme para sua
escrita que ele fez tudo de sopetão – uma das coisas que ele admite é que revisou o texto algumas vezes – fora a quantidade de tempo gasta com cada palavra, antes de ser repassada para o primeiro esboço) e principalmente o tom leve e agridoce da narrativa (como nos dois trechos que cito a seguir, em que ele escapa de seu escafandro através da criação de histórias), tornam o livro excelente.

“Para desviar o rumo dos decretos do destino agora tenho em mente uma grande saga cuja testemunha-chave é um corredor de maratona, e não um paralítico. Nunca se sabe. Pode ser que funcione.”

“De repente, o senhor L., inerte desde que a cortina subiu, afasta lençóis e cobertas, pula da cama e dá uma volta em cena, sob iluminação irreal. Aí, tudo fica escuro, e ouve-se pela última vez a voz em off, o monólogo interior do senhor L.: ‘Merda, era sonho.’”

Ele não está acomodado à situação. Prova disso está na cena em que fala sobre como recusa usar os uniformes dos pacientes de hospital e como prefere suas roupas anteriores:

“Mas neles prefiro ver um símbolo de que a vida continua. E a prova de que desejo continuar sendo eu mesmo. Já que é para babar, que seja em cashmere.”

Quando vê uma bela mulher: “O escafandro invisível que me encerra o tempo todo parece menos oprimente.”

Não fala de como aprecia o novo estilo de vida, como se não quisesse voltar ao normal, como se o problema fosse um presente e uma forma de ele ter um ponto de vista inovador a ser usado literariamente – ou como se as adversidades o ensinassem uma importante lição de vida que não poderia ser aprendida por outros meios. Não: esse tom de auto-ajuda, idealizado e insincero, inexiste no livro.

O interessante da reflexão sobre as dificuldades de sua escrita, com a qual comecei este texto, é que você não precisa ser propriamente um escritor para que role uma identificação com Bauby. Podemos associar, por exemplo, essa situação com a nossa condição de leitores. Nunca temos tempo. Ler é caro. Poucas vezes admitimos nossa procrastinação ou preguiça mesmo.

(Aqui não busco falar de modo totalizante, não tenho a intenção de fazer lavagem cerebral alguma, algo que pregue a obrigatoriedade da leitura sobre as outras coisas da vida. Nesse sentido, meu posicionamento soa bastante parecido ao que está no tópico “d” do post do blog pessoal de Antônio Xerxenesky, novo colaborador mensal aqui do Meia Palavra
http://blog.antonioxerxenesky.com/?p=620. Quero me dirigir àqueles que gostam de – ou ao menos se interessam por – ler e que, mesmo assim, falam esse tipo de coisa. Posso, inclusive, apresentar um exemplo disso em mim: enquanto reclamava com um amigo sobre a falta de tempo para ler algumas obras para as provas da faculdade – a Ilíada e a Odisséia, de Homero, inclusas –, ele me apontou que nas últimas semanas eu tinha lido livros que somavam
um número de páginas bem superior aos textos clássicos necessários à minha formação acadêmica.)

Após a leitura de O escafandro e a borboleta, tudo aquilo que costumeiramente nos impede de fazer algo soa como desculpinha. Depois de nos darmos conta do escafandro mental, podemos concordar com o que Bauby diz no prólogo do livro:

“O escafandro já não oprime tanto, e o espírito pode vaguear como borboleta. Há tanta coisa para fazer. Pode-se voar pelo espaço ou pelo tempo, partir para a Terra do Fogo ou para a corte do rei Midas.”