A participação e/ou presença em guerras e aventuras marcou a vida do escritor norte-americano Ernest Hemingway. Por conta de sua novelesca vida, boa parte de sua literatura tem um cunho autobiográfico mais acentuado, precisamente porque boa parte de seus romances, contos e novelas é haurido intensa e amplamente de suas próprias vivências, sem deixar de cultivar, nesse ínterim, elaborações artísticas mais profundas ou encriptações ficcionais mais complexas e ricas de expressividade.

Por conta disso, portanto, sabemos que Adeus às armas tem muito da própria experiência de Hemingway na Primeira Guerra Mundial, quando lutou ao lado dos italianos, no caso dirigindo ambulâncias e lidando com os feridos do front. A experiência do escritor na guerra deixou marcas existenciais profundas em Hemingway, de modo que sua literatura carregue o estigma de ter vivido os traumas e situações extremas que constituem o cotidiano de um conflito da envergadura do de 1914.

O livro de 1929 é narrado em primeira pessoa pelo Tenente Frederic Henry, um soldado norte-americano que se encontra próximo ao front em que se digladiam austro-húngaros e italianos. Suas funções e atribuições militares são basicamente as mesmas de Hemingway, responsável por recolher os feridos e demais enfermos que se avolumam, oriundos da carnificina da frente de batalha e levá-los para as tendas hospitalares.

Henry divide seus dias entre suas obrigações militares e caricatas conversas com um sacerdote das redondezas, e também com seu companheiro Rinaldi, um bufão soldado italiano cujo carisma quase de imediato conquista o leitor. Expansivo e irreverente, Rinaldi encarna um paliativo para a guerra, suas atitudes constituem-se num antídoto parcial à tensão que percorre cada dormitório improvisado e que assoma a cada vez que uma sirene irrompe no regimento. É Rinaldi, inclusive, que apresenta a Henry e enfermeira inglesa Catherine Barkley, com quem o soldado norte-americano se envolverá num romance cujo desenlace desafia a própria situação extrema que é a guerra.

Ferido na perna por uma explosão – assim como o fora Hemingway – Henry é enviado convalescente à Madri, onde deve repousar o tempo necessário para retornar ao front. Catherine o acompanha, e é na cidade espanhola que os dois consumam o amor que até então aparecia sempre velado pelo ambiente de caserna a cercá-los constantemente. Uma das coisas que mais surpreende em Adeus às armas é que, apesar do fato de ele se passar no meio de uma guerra – cujas proporções lhe valeram o dístico “Mundial” -, a maior parte do livro está voltada à relação entre Henry e Catherine.

Isso chama a atenção porque obras que se passam durante a guerra costumam ter a violência, as descrições chocantes e a falta de sentido do conflito como ingredientes principais, o que não acontece necessariamente com Adeus às armas. Não que Hemingway ignore essa dimensão de horror da guerra, nem que seja ingênuo para aclamá-la como algo heróico, mas na visão do escritor norte-americano contar uma história de amor e contrastá-la com o cenário de desolação beligerante expressa melhor suas opiniões acerca do que fora a guerra e quais poderiam – ou deveriam – ser a visão e a opinião dos homens a esse respeito.

A ironia com que um soldado recebe uma medalha, por exemplo, desvela alguns dos sentidos e significados que Hemingway atribui à guerra através de seus retratos literários e de suas histórias:

“‘Você vai ser medalhado. Vai receber a medalha de prata ou, pelo menos, a de bronze.’
– Por quê?
– Porque foi ferido gravemente. Eles dizem que se ficar provado que você realizou algum ato heróico, receberá a medalha de prata. Mas a de bronze está garantida. Conte o que aconteceu. Praticou algum ato heróico?
– Nada, nada disso. Fui arrebentado enquanto comia um pedaço de queijo.” (p. 118)

ou, ainda, quando ele descreve os mecanismos de sustentação de uma guerra:

“Não há nada pior do que a guerra. (…) quando um homem percebe em toda a extensão o horrível da guerra, não pode combatê-la porque já está louco. Mas há gente que jamais percebe esse horror. Gente que tem medo dos oficiais. É com esses que se fazem as guerras.” (p. 106)

A forma como Hemingway lida com os horrores do conflito retratava uma exceção, digamos assim, pois muitos outros soldados não tiveram a mesma sorte de Henry. Acompanhando as românticas caminhadas do casal pelas ruas de Madri ou sua idílica estada nos Alpes Suíços, parece até que a guerra é suspensa, como se suas garras não pudessem mais alcançá-los. É aí que Hemingway faz surgir, repentinamente, como uma espécie de compensação cósmica macabra, a mesma morte que os soldados do front enfrentavam, ainda que sob outras vestes.

Edmund Wilson, famoso crítico literário norte-americano, ao escrever sobre os romances de Hemingway sobre Illinois em comparação com suas obras sobre a guerra – especialmente Adeus às armas e Por quem os sinos dobram -, falou sobre um “padrão moral”, uma concepção, por parte do autor, de que parece haver uma espécie de simetria moral que balanceia atos, recompensas e punições tanto nas florestas coníferas dos Estados Unidos quanto nos embates em solo europeu. Sem me alongar por demais nesse pormenor, talvez seja possível resumir a interpretação de Wilson dizendo que para ele, Hemingway possuía uma espécie de mecanismo de “justiça poética” complexo e interessante, e que ele seguia algumas linhas norteadoras tanto quando falava sobre caçadas e pescarias, quanto quando falava sobre explosões, ferimentos e mortes no campo de batalha.

A situação de Frederic Henry em relação à guerra e aos demais soldados que não tiveram a mesma sorte que ele parece apontar na direção que Wilson ressaltou com relação à literatura de Hemingway. Além de um encarar pesaroso sobre a vida e o destino dos homens, o escritor procura, por meio da construção da história, projetar uma compensação moral de feições cruéis sobre seus personagens. O incrível idílio de Frederic e Catherine, por destoar do infausto destino dos milhares de outros soldados, parece exigir uma espécie de retratação de fundo moral. Por conta disso, para mostrar como a sombra da guerra – e quiçá a sombria condição humana – pesa sobre todos os homens, Hemingway molda a história para fazer o destino dos personagens voltar a um padrão moral. É a expressão individual da prodigamente descrita Retirada de Caporetto, quando os austro-húngaros, fortalecidos pela ajuda alemã, conseguiram romper a linha de frente italiana, ocasionando uma debandada que adquiriu em Adeus às armas algo de dimensão épica, ainda que anti-climática nesse sentido.

O alcance desse retrato de homem e da condição humana é amplo e profundo o suficiente para que saibamos estar diante de um escritor cuja obra e cujo pensamento possuem visões interessantes e questões filosóficas para serem analisadas e cotejadas em sucessivas sabatinas e exegeses. Os desdobramentos do romance estão para além de suas páginas e das trajetórias individuais dos personagens, concernem a nós mesmos como seres humanos em nossas próprias refregas e dilemas.

Num desfecho que ressalta o vácuo espiritual que ficara após as explosões, tiros e todos os horrores da guerra, Hemingway mostra o infausto destino de Frederic Henry, prenunciando no fechamento de Adeus às armas alguns dos dilemas que deram o tom pesaroso da geração perdida:

“Eu não era mais eu; não era mais aquele que Catherine conhecera. Um ser vazio de tudo agora, deitado sobre o estômago, ao tempo em que um exército se retirava e outro avançava. Eu tinha perdido minhas ambulâncias e meus mecânicos, como um guarda de armazém que perde tudo quando há incêndio. Mas no meu caso não havia seguro. Eu estava sem nada.” (p. 265)

HEMINGWAY, Ernest. Adeus às armas. Tradução de Monteiro Lobato. Rio de Janeiro: Delta, 1969.