O que você fez nas últimas dezoito horas? Você acha que é possível viver uma vida nesse tempo? Sentir  todas as emoções do mundo em um dia? Será possível juntar toda uma vida, com morte, nascimento, solidão, alegria, rejeição, traição, prazer, em tão poucas horas? Tudo que um ser humano sente? É possível entrar na cabeça de alguém, adivinhar e seguir o que ele pensa? Depois de Ulisses, acho que sim.

Hoje em dia tem o Jack Bauer tentando salvar o mundo em 24 horas, mas o pioneiro nessa história foi o escritor irlandês James Joyce. A obra Ulisses inspirou e marcou toda a literatura mundial. Além disso, o “tijolo” de 912 páginas pode ser usado como arma letal na cabeça de alguém, caso seja necessário.

A influência do autor é tão descomunal que fica difícil comentar todas. Ele foi quem consolidou a técnica conhecida como “fluxo de consciência”, extremamente atual e moderna. A forma narrativa busca seguir de maneira espontânea a linha de pensamento das personagens. Então, sim, dá para entrar na cabeça do personagem.

A capacidade de observação de Joyce é assustadora, é impossível não se identificar com pelo menos um medo, um anseio, ou um pensamento do personagem. Em sua obra, tudo é percepção e sensação. Podemos sentir o vazio asfixiante do personagem, que vaga pela cidade, perdido. O escritor apresenta cada detalhe da metrópole Dublin, ele consegue descrever com clareza as degradações e as exaltações da cidade.

O romance foi criado para parodiar a famosa Odisséia de Homero, pois Joyce queria criar  seu próprio Ulisses. Tudo acontece em Dublin, na Irlanda, em um único dia, 16 de junho de 1904.  A data foi escolhida por Joyce, pois foi o dia em que  fez amor pela primeira vez com sua mulher Nora Barnacle.

O livro é tão importante para os irlandeses, que eles criaram um feriado na Irlanda em sua homenagem, o Bloomsday.  O nome é uma homenagem ao judeu Leopold Bloom, personagem principal do livro. Ao longo dessas 18 horas, a obra acompanha  os pensamentos de Bloom,  que é casado com uma mulher que o trai constantemente,  Molly.  Além do poeta Stephen Dedalus, jovem cheio de divagações filosóficas durante o decorrer da história.

Você pode conhecer cada rua de Dublin com clareza, é como se ele  a desnudasse. A cidade existe como um personagem, que em muitos momentos complementa a complexidade de Bloom. Nosso herói é um homem comum que passaria desapercebido, ele acorda pela manhã, prepara o café para sua esposa  e, enquanto isso, conversa com o gato . Tudo acontece em uma cidade comum como a minha, mas ele  consegue carregar uma vida em um dia. Um personagem como poucos, que não enfrentou sereias assassinas, mas com a dificuldade de se manter íntegro em meio a tudo.

Joyce passou por maus bocados para publicar o livro em 1922, na pequena e modesta livraria em Paris, a Shakespeare and Co. Ele terminou de escrever o romance na livraria, em uma cama cheia de percevejos entre suas prateleiras poeirentas.

Muitos têm medo do Ulisses, mas tenho de confessar que eu também tinha, pois a edição traduzida pelo  Houaiss é de meter medo, de tão erudita. Porém, depois de folhear a tradução da editora Alfaguarra, feita pela escritora Bernadina da Silveira, fica muito mais fácil. Ninguém usa palavras complexas para pensar, então, talvez, os pensamentos alheios funcionem de forma simples, e a tradutora consegue passar isso.

Assim, aconselho a comprarem o livro. Caso  não consigam terminar de ler, o que vai ser uma pena, mantenha-o como instrumento de autodefesa, nunca se sabe quando vai ser preciso quebrar a cabeça de alguém.

Feliz Bloomsday!!

Sobre o autor: Michelle Horovits é jornalista e mestranda em literatura na UNB.

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