Em um dos vários textos escritos a respeito de Invenção de Orfeu (1952), Murilo Mendes nos conta sua relação pessoal com a obra do alagoano Jorge de Lima, aproximação de amigo e admiração de poeta. Relatos da discussão sobre o título da obra, do fascínio em ver no longo poema toda uma reflexão sobre a literatura e sobre a posição do homem no mundo. Murilo, assim como Jorge, era um católico que buscava na investigação teológica uma compreensão metafísica do homem. Em Invenção de Orfeu, recentemente reeditado pela Cosac Naify em parceria com a Editora Jatobá, vemos não apenas a criação da poesia sob a forma do mito grego de Orfeu, mas também as agruras do ser humano diante do que é terreno, na ilha do poema. É, de fato, um livro difícil, que ainda não sei se conseguir entender bem.

A divisão da obra nos remete à épica: há cantos, muitos cantos (no total, dez deles); porém não podemos nos deixar levar pelas aparências, porque muito da obra se diferencia do gênero clássico. Além da falta da figura do herói (ou até mesmo de um anti-herói, como no caso da épica romana tardia), não há qualquer “superioridade” na abordagem do tema ou na forma. Falo de algo superior de acordo com a poética aristotélica, é claro. O que se vê na poesia de Jorge de Lima é de tudo menos algo “inferior” a outro poeta. É claro que a divisão em cantos está ali para nos remeter, de certa maneira, à épica, mas acredito que ela está ali apenas para ser reelaborada. Ainda vamos pensar como isso acontece.

Invenção de Orfeu não é uma épica, mas não deixa de remeter a ela e a outras formas poéticas. Como Mário Faustino afirma em texto publicado como anexo da edição da Cosac Naify, Jorge de Lima parece ter sintetizado nessa sua obra final um pouco de toda a poesia que produziu e que foi produzida por outros por bem ou por mal. A invenção da poesia certamente deve passar por uns mau bocados, por momentos em que ela está ali representada, mas não necessariamente bem composta. Não há razão para desvalidarmos o trabalho de Jorge por isso. Como Faustino diz, a Invenção traz tudo consigo e o que pode ser considerado ruim apenas justifica o que é bom. A interação entre versos incríveis e outros péssimos é na verdade impressionante.

Nesse caos que é a Invenção parece ficar claro que Jorge de Lima se esforça para ser variado, como se quisesse que todos o lessem. Apesar disso, tudo que sua obra sofreu foi negligência: até hoje ela não teve a atenção merecida, mesmo que seja para críticas negativas. Também não é como se ninguém a tivesse lido: não só amigos como Murilo Mendes o fizeram, mas também Mário Faustino e Roberto Piva, de uma geração posterior. Segundo seu Paranoia, o poeta alagoano cria a poesia e com ela o Caos (com maiúscula):

 

Jorge de Lima, panfletário do caos

 

Foi no dia 31 de dezembro de 1961 que te compreendi Jorge de Lima

enquanto eu caminhava pelas praças agitadas pela melancolia presente

na minha memória devorada pelo azul

eu soube decifrar os teus jogos noturnos

indisfarçável entre as flores

uníssonos em tua cabeça de prata e plantas ampliadas

como teus olhos crescem na paisagem Jorge de Lima e como tua boca

palpita nos bulevares oxidados pela névoa

uma constelação de cinza esboroa-se na contemplação inconsútil

de tua túnica

e um milhão de vaga-lumes trazendo estranhas tatuagens no ventre

se despedaçam contra os ninhos da Eternidade

é neste momento de fermento e agonia que te invoco grande alucinado

querido e estranho professor do Caos sabendo que teu nome deve

estar como um talismã nos lábios de todos os meninos

 

Para aqueles que já leram melhor Piva, é interessante comparar poemas da sua primeira fase (compilada em Um estrangeiro na legião) com vários fragmentos da Invenção de Orfeu, como aqueles do canto V (“Poemas da vicissitude”). Há Lautréamont nos dois casos, há um grotesco cultuado, mas cada um à sua maneira de se fazer versos.

Como Piva, demoro para compreender Jorge de Lima. Já li poemas soltos seus antes, como o famoso “Essa negra fulô”, mas nada do que existe em Invenção de Orfeu, espécie de opus magna do autor, uma obra que traz um pouco de tudo de si. Em uma série de momentos, fica clara a intenção de ser diverso, como no começo do segundo poema do mesmo canto V:

 

Nem tudo é épico e oitava-rima

pois muita coisa desabada

tem seu sorriso cotidiano

e uns dorsos suados, pés humanos,

dois utensílios: João e Joana

com seus pequenos firmamentos

entre corujas e cumeeiras.

(…)

 

Nesse canto da poesia no qual tudo parece tão épico, o eu-lírico nos chama a atenção para outros elementos ditos “menores”. Trata-se de uma épica do sujeito, da subjetividade, do homem que busca um universo dentro de si. Talvez essa voz seja saída do outro, não desse eu, como se lê no sexto poema do canto III (“Poemas relativos”).

Em outros poemas, fica claro o projeto metaliterário de se construir um livro sobre a criação da poesia sem esquecer que ele se constitui justamente de poesia. Cantos como o VII (“Audição de Orfeu”) dialogam muito com a tradição literária portuguesa. A todo tempo nos deparamos com lembranças de mitos portugueses vindos desde a Idade Média, além de referências à própria literatura, especialmente Camões, presente como intertexto desde o primeiro verso do livro. Se pudermos chamar a Invenção de épica, seria somente um épico da literatura, algo tão modernamente complexo que apenas poetas como Jorge de Lima poderiam fazê-lo.

Outro aspecto que não se pode deixar de notar no livro é a religiosidade de sua poética. Como dito anteriormente, não se pode negar a presença do Catolicismo na construção de metafísica da Invenção de Orfeu, porém não podemos reduzi-la a um manual de catequese. Quatro das cinco citações da epígrafe são derivadas de textos bíblicos, sendo que a maioria delas traz a ideia da construção e uma delas a noção de ilha, que também está presente na quinta citação, de Guillaume Apollinaire.

A Bíblia católica, não devemos nos esquecer, é um dos fundamentos da cultura ocidental cristã, daí o interesse de Jorge de Lima em citá-la mesmo que por trechos que não denotem algo necessariamente religioso. O conceito da invenção, da gênese está também imiscuído de religião.  O que se vê ao longo dos versos dessa Invenção é que o poeta que se forma nessa “biografia épica” – um dos muitos subtítulos da obra, todos presentes na imagem acima – está imerso nessa gênese por completo. Ele não se esquece que nasce de algo que já existia, como nos primeiros versos do décimo poema do canto I (“Fundação da ilha”):

 

Os rios que passam,

os rios que descem,

já foram cantados

por muitos.

 

Os rios parados

na face do tempo,

porém mais velozes,

são rios.

 

Os seus afogados

Jamais conseguiram

Descer apressados

Para o mar.

(…)

 

Nos rios parados da poesia, o poeta se debate em busca do mar, da resolução final. A poesia, assim como a vida retratada nos poemas, não é algo necessariamente satisfatório para Jorge de Lima. Sua produção, ou somente essa Invenção de Orfeu, é um constante exercício para fazer mover um rio parado. A sensação do “tudo foi dito” de Augusto de Campos, tão moderna, apenas transtorna o poeta. Como ser em um mundo em que tudo já foi? O poeta se pergunta sobre seu futuro, sobre o futuro sem esquecer do que a religião disse no passado. A agonia do poeta religioso na modernidade é perceber que ainda não consegue saber o que virá amanhã. Só lhe resta professar o caos.