Fico pensando quantas pessoas lerão A lentidão, de Milan Kundera, livro sobre o qual essa resenha se debruça. Creio que não muitas, alguns se contentarão com A insustentável leveza do ser, outros, poucos, irão mais além e procurarão A valsa dos adeuses ou Risíveis amores; mas pouquíssimos (espero estar errado) irão “gastar” algumas horas lendo uma obra não tão canonizada quanto o livro de 1984.

Não me entendam mal, não estou condenando ninguém por não ter a mesma mania que eu, de ser fissurado tanto no que os autores têm de clássico quanto no que eles escreveram bordejando sua opus magnus, mas aproveito o ensejo para recomendar que investigar o que o autor tem além da obra-prima pode ser tão (ou quem sabe até mais) interessante quanto percorrer os meandros de um autêntico cânone.

A lentidão foi publicado em 1995, um livro bem curtinho por sinal, que está mais preocupado em construir reflexões do que propriamente em arquitetar um enredo e uma trama sólidas. Existem sim personagens, como Vincent, Berck, Manchu e Pontevin; mas as situações estapafúrdias que esses vivem no decorrer do livro são, antes de mais nada, escopos para que o autor alce vôos filosóficos (ah, a filosofia kitsch do Kundera) mais altos e abstratos, mas nem por isso menos acertados e significativos, ainda mais para a contemporaneidade (ou pós-modernidade, dependendo de suas concepções) em que vivemos.

No primeiro capítulo nos deparamos com o autor falando em primeira pessoa sobre um passeio de carro que ele e sua esposa aproveitam na região campestre da França, entre castelos e campinas, enquanto atrás deles um motoqueiro acelera e parece nervoso por não conseguir ultrapassá-los e poder assim subtrair-se do ritmo, a seu ver vagaroso demais, do casal que aproveita o clima e a vista da região.

Esse é o mote que perdura pelo resto do livro apesar dos personagens, das situações absurdas, das picardias eróticas e as filosofias kitsch: como a noção de tempo se transformou na era em que vivemos e como lhe sobrevieram outras mudanças. Quanto à lentidão incrustada no título, Kundera escreve o seguinte, de acordo com os preceitos do que ele chama de “matemática existencial”:

“Há um vínculo secreto entre a lentidão e a memória, entre a velocidade e o esquecimento. (…) o grau de lentidão é diretamente proporcional a intensidade da memória; o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento.” (pp. 30-31)

Esse trecho é de tal concisão e compreensão a respeito da realidade em que vivemos, que é impossível não voltar nele e lê-lo novamente, como forma de resistência ao esquecimento, lê-lo bem devagar para intensificar a memória, fazê-lo perdurar mnemonicamente, pois ele é uma autêntica chave de interpretação que desnuda grande parte dos mecanismos pelos quais nossa sociedade se move.

A superficialidade do mundo em que vivemos, através dos olhos de Pontevin, faz surgir a lógica do “dançarino”. Ele diz que nosso mundo está infestado de dançarinos, pois mais do que fazer algo por conjunção de essência, faz-se pela aparência daquilo, não pelo que é, mas pelo que parecerá aos demais. É a pura síntese do que Guy Deborde convencionou chamar de sociedade do espetáculo.

Esse livro é intitulado A lentidão, mas poderia tranqüilamente ser intitulado: Reflexões de Milan Kundera sobre o mundo contemporâneo. É por isso que mais à frente, ele escreve que:

“(…) nossa época se entrega ao demônio da velocidade e é por essa razão que se esquece tão facilmente de si mesma. Ou prefiro inverter essa afirmação e dizer: nossa época está obcecada pelo desejo do esquecimento e é para saciar esse desejo que se entrega ao demônio da velocidade.” (pp. 91-92)

Quem sabe vários leitores tenham sido tragados nas maquiavélicas malhas do demônio da velocidade e nem mesmo cheguem a esse parágrafo, mas aos que obstinadamente resistiram à sedução da velocidade, reforço o convite para conhecer tudo o que essa resenha, em sua “necessidade” de não partilhar da lentidão reverenciada por Kundera (e contraditoriamente por esse que vos escreve em igual medida), deixou passar. A lentidão, como o próprio título já postula, é um livro para degustar, para que vagarosamente se possa prolongar o prazer da leitura e a intensidade da memória.