Chega a ser impressionante a quantidade de coisas que o tcheco Bohumil Hrabal consegue abordar em um livro curto como Eu servi o rei da Inglaterra. Em pouco mais de 200 páginas Hrabal dá voz a Ditie, que reconta praticamente toda sua vida, impregnando-lhe um tom reflexivo e poético.
Ditie fala do seu começo de carreira como ajudante de garçom no Hotel Praga Dourada, de sua admiração por um grupo de clientes habituais e que, aparentemente, eram bastante ricos. Justamente essa admiração e o desejo de imitá-los é que o leva à sua primeira experiência sexual, no bordel Paraíso- onde o dinheiro que conseguiu amealhar vendendo salsichas na estação e com as gorjetas do restaurante do hotel unem-se a sua natureza gentil e um pouco ingênua, e o tornam mui bem quisto pelas profissionais de lá, a despeito de sua baixa estatura.
Ditie, porém, acaba por deixar o Praga Dourada, e, indicado por um bem sucedido vendedor de balanças, vai para o Tichota. Lá ele aprende a ser um garçom melhor, e cria ambições maiores. Acaba não dando certo nesse emprego e por fim, acaba trabalhando no Hotel Paris.
Lá um velho chefe dos garçons se afeiçoa a ele e passa a lhe ensinar muitas coisas- sobre a vida e a profissão. É capaz de adivinhar a nacionalidade e o pedido dos clientes, sem sequer falar com eles. Quando Ditie lhe pergunta a origem dessa sabedoria, ele simplesmente responde ‘Eu servi o Rei da Inglaterra.’
A vez de Ditie, porém, chega quando ele tem a oportunidade de servir Haile Selassie, o Imperador da Etiópia. Recebe uma medalha por isso, que carregará até o fim da vida. A condecoração porém, começa a gerar problemas com os outros funcionários e com seu patrão.
A coisa se consuma quando Ditie arranja uma amante alemã, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, quando as tensões entre os nacionalistas tchecos e os nazistas estão em seu auge. Levando uma surra e uma cusparada, Ditie é demitido e humilhando, prometendo a si mesmo que se tornaria um milionário e seria aceito por aqueles que o desprezaram.
A partir daí a vida de Ditie muda totalmente. Ele se casa, tem um filho, perde esposa e filhos, vai para a prisão por duas vezes- uma durante a ocupação alemã, como suspeito de colaborar com os comunistas Tchecos, outra logo após a guerra por ter colaborado com os alemães-, compra seu hotel, tem a chance de vende-lo para Steibeck mas não o faz, e acaba por perde-lo com o advento do comunismo.
Hrabal preenche cada página de modo poético e engraçado ao mesmo tempo. Mesmo nos momentos mais terríveis- e eles existem aos montes- o leitor não perde de vista o curioso misto de ingenuidade e ambição presente no pequenino Ditie.
Além disso, ele coloca em evidência o ser humano, o indivíduo, em meio a avalanche de acontecimentos históricos do período pós-Primeira Guerra Mundial, em especial na turbulenta Europa Centro-Oriental. As primeiras tensões entre tchecos e alemães, a anexação dos Sudetos pelos nazistas, o início da guerra, o tratamento dado aos eslavos nos territórios ocupados pelos alemães, o drama dos judeus (ainda que de forma fugidia), a queda de Hitler, a restauração da independência Tcheca e o início do comunismo na Tchecoslováquia, são todos contemplados por Ditie que, ao mesmo tempo que não é impassível à marcha da história, preocupa-se mais com sua própria sobrevivência, com sua própria ambição, com seu sentimento de culpa e retribuição e, porque não, com sua própria e singular visão da beleza do mundo.
Eu servio o Rei da Inglaterra
de Bohumil Hrabal, tradução de Manoel Paulo Ferreira
224 páginas
R$ 50,00
Saiba mais sobre essa e outras obras no site da Companhia das Letras
O livro de Bohumil, assim como o de Jerzy Kosinski (O Passaro pintado), Ivan Klíma ( Amor e lixo), Kundera ( A insustentável leveza do ser) e Isaac B. Singer ( o certificado) trata o ser humano como vitima e não o povo judeu exclusivamente como tratam os autores citados. Gostei da leitura, pelo equilíbrio, mostra que além de ingenuidade do capital e a ardilosidade cruel em que o personagem definha vitimado pelo sonho ariano e as promessas de um mundo novo dos soviéticos, que a busca interior passa a ter mais significados quando se tem uma harmonia interior capaz de conviver com estes fragmentos dejetores na tentativa de construir tipos e modelos sociais e que você consegue viver sim na periferia de todo e qualquer regime, é uma questão de opção…