A genialidade intrincada de Jorge Luís Borges serviu para lhe angariar um lugar entre os grandes nomes da literatura mundial, mas, além disso, pelo próprio caráter de múltiplos diálogos com diversos campos do conhecimento, fez com que as “ambivalências” de sua prosa o tornassem universal a seu modo. Aproveitando o ensejo das comemorações do seu 112º aniversário é que essa coluna (e as que a ela se seguirão) foi escrita.

Como o título anuncia, esse texto procurará combinar os meandros da literatura borgeana com algumas das peculiaridades da historiografia, não necessariamente como campo científico, mas também como experiência ontológica da existência humana. Se me permitem o trocadilho, ao contrário de bifurcar as veredas, tentarei aqui mostrar como as veredas da literatura borgeana e da natureza histórica podem se juntar, ainda que com intermitências.

Ficções, de 1944, talvez seja o livro mais famoso de Borges, e é um dos contos presentes nesse livro que servem de lastro para essa reflexão, a saber, Pierre Menard, Autor do Quixote. Esse conto nos revela a audaciosa obra de Menard, que quer escrever não uma obra equivalente ao Dom Quixote de Cervantes, mas o próprio Quixote, com a diferença de que alguns séculos se interpõem entre as duas obras e autores.
Após intempéries e contratempos que parecem se opor ao intento ousado de Menard, ele consegue produzir alguns escritos que nos são fornecidos pelo narrador:

“a verdade, cuja mãe é a história, êmulo do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro.” (p. 56)

Cotejando com o texto original de Cervantes, o narrador encontra a passagem correspondente:

“a verdade, cuja mãe é a história, êmulo do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro.” (p. 56)

Não bastasse a referência à História, evidenciada pela própria escolha do trecho, Borges nos coloca diante de dois fragmentos simultaneamente idênticos e profundamente distintos. Puristas hão de erguer-se e clamar por pastiche, plágio e outras acusações virulentas buscando salvaguardar tão eminente nome do cânone literário, mas a genialidade de Menard, apesar da ambigüidade de seus recursos, tem de ter seu valor reconhecido e discutido.

Borges, antes de referir-se a passagem supracitada e depois de narrar os obstáculos defrontados por Menard quando da elaboração de seu Quixote, esboça o que pretendo atentar nesse texto:

“Compor o Quixote no início do século XVII era uma empresa razoável, necessária, quem sabe fatal; nos princípios do XX, é quase impossível. Não transcorreram em vão trezentos anos, carregados de complexíssimos fatos. Entre eles, para citar um apenas: o próprio Quixote.” (p. 54)

O que faz o trecho de Cervantes e de Menard serem tão idênticos e tão distintos é justamente a própria historicidade da existência humana e dos produtos de sua inventividade. O trecho em questão, quando pensado na época de Cervantes, possui um significado que pertence a seu tempo e que, por sua vez, difere de seu significado quando enxergado à sombra do contexto histórico de Menard.

Assim, Borges nos faz enxergar como tanto quanto os sujeitos são históricos, também os conceitos o são, bem como os valores, os sentidos e a cultura em geral. Isso se torna interessante por imputar curiosas peculiaridades ao que supostamente seria universal. Pode-se talvez dizer que o que Cervantes escreveu seja aplicável a todos os tempos, visto sua obra ser a mesma desde que foi escrita, mas isso não é verdade se pensarmos que ela é lida em contextos diferentes da mesma forma como foi produzida em condições diferentes.

O que Cervantes disse ao falar sobre a História pode ter muito a nos dizer ainda no presente, mas é impossível e ingênuo querer dizer que a História no século XVII é a mesma que no século XX. O mesmo ocorre com dizer que a História é “testemunha do passado”. Isso significava uma coisa no tempo de Cervantes que certamente não corresponderá fidedignamente ao que significa no tempo de Menard.

Os conceitos são históricos (como bem assinalou Raymond Williams) bem como a literatura, como fruto do intelecto humano, também é histórico. Não há livro que não seja historicamente condicionado, bem como não há homem que não seja “filho de seu tempo” (para usar as palavras de Marc Bloch) em alguma medida. Daí decorre a riqueza de se estudar historiograficamente a literatura: perceber a historicidade de nós mesmos e de tudo o que fazemos enquanto sujeitos que existem no tempo e em condições sócio-históricas dadas (mas não deterministas).

Borges soube traduzir com brilhantismo a natureza histórica da humanidade bem como das coisas que são produto de sua ação. Extravasando o estritamente literário, Borges mostra as razões que justificam sua celebração ainda hoje. Resta saber quem reescreverá agora Borges, Menard e companhia, já que lá se vão 72 anos desde que esse conto veio a público, e muita coisa aconteceu…

BORGES, Jorge Luis. Ficções. Tradução de Carlos Nejar. São Paulo: Abril Cultural, 1972.

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