J. G Ballard, na introdução de Crash, atenta para o fato de que a ficção e realidade parecem ter invertido o seu papel. Sua opinião é a de que a vida que chamamos de real é uma ilusão, pois vivemos as custas da publicidade e impressões. Os romancistas, para escreverem ficção, não precisam fazer esforço algum a não ser o de observar o que está a sua volta e traduzir em palavras. Dessa forma, resta a ser real aquilo que está em nossa cabeça, nossos sonhos e vontades. Sendo assim, até podemos considerar que Crash é menos ficcional do que parece.
Talvez por isso que o autor tenha decidido usar o próprio nome ao personagem principal da trama, que nos conta a narrativa em primeira pessoa. Na narrativa, Ballard tem uma nova visão sobre acidentes automobilísticos: Em sua cabeça, eles ganham uma certa sensualidade e são carregados de erotismo. Não digo que esses pensamentos sejam de fato correspondentes ao verdadeiro J. G. Ballard, mas sim que ele teve a intenção de fazer esse flerte entre o real e o pensamento.
A narrativa começa com a morte de Dr. Vaughan, que é a pessoa que faz com que Ballard se apaixone pela estilização sexual do acidente de carro. É esse sujeito que, coberto de cicatrizes e ensaios de sua morte, como o autor relata, que leva Ballard a roubar carros em aeroportos e avançar a toda velocidade por estradas sombrias. Num primeiro momento, essa relação é o foco da narrativa, bem como as mulheres de Ballard e do amigo, e como os quatro exerciam suas sexualidades de maneira desregrada. Vaughan morre, e tenta levar consigo a atriz Elizabeth Taylor, já que ele também possuía certo fetichismo por celebridades e frequentemente as observava transitar pelo aeroporto.
Depois disso, conhecemos a vida de Ballard e seu primeiro acidente, que mata um homem e deixa uma jovem mulher viúva. Levado para um hospital dedicado a pessoas que sofreram acidentes de avião, o personagem conta o estranho prazer de se deitar em uma cama onde outros corpos ja estiveram e sofreram. Esta é somente a largada para a longa obcessão que passara do sangue de Vaughan para Ballard.
Publicado em 1973, o romance retrata a época em que ser humano e tecnologia se unem partindo de um ponto de vista diferente, causando um misto de choque e estranhamento no leitor mesmo quase quarenta anos depois de sua primeira edição. Aqui, a tecnologia é a ferramenta que conduz as pessoas aos seus únicos momentos de liberdade e real sentimento de vida, mais precisamente, os carros e acidentes por eles causados. A sexualidade é violenta e aparece em um texto sem nenhum tipo de pudor, tornando o livro praticamente um romance pornográfico.
O acidente de carro é uma união de estranhos que tem em si a sexualidade ao, por exemplo, promover a mistura sangue de uma pessoa com a outra, no mais, ele tem a adrenalina da velocidade, derrapagem e, por fim, ao se sentir a morte, percebe-se que se está vivo. As cicatrizes são as marcas que exibem para sempre a precisão daquele momento em que morte e vida correram ao mesmo tempo dentro de um corpo. Ao receberem essas marcas, as pessoas envolvidas em um acidente jamais se esquecerão daquele momento. Ballard trabalha um romance sobre sexo e automóveis, mas, mais do que isso, a psicose e os desejos mais íntimos do ser humano são um foco importante. A falta de pudor e moral do autor torna as personagens assustadoramente reais.
Tradução: José Geraldo Couto
Preço: R$49,50
Páginas: 240
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Um livro realmente necessário para entender a neurose do homem médio contemporâneo. Não sei porque, mas sempre acho “A Besta Humana”, do Zola, seu equivalente no século XIX.
Só pra constar: em 1996, o David Cronenberg se inspirou nesse livro pra fazer um dos filmes mais perturbadores de todos os tempos. >>http://udigrudi.com.br/andreblak/?p=72