Existem tantos livros e filmes a respeito da Shoah, mostrando como era dura a vida – e a morte – nos campos de concentração, que um outro aspecto do Holocausto acaba sendo, por vezes, esquecido, ou pelo menos jogado para segundo plano. Estou falando sobre os guetos, talvez não tão cruéis, mas muito mais numerosos que os campos de concentração – qualquer cidade que tivesse uma quantidade suficiente de judeus tinha um: eram movidos todos para um bairro afastado, cercados, vigiados e tinham de obedecer um código de comportamento estrito, que ia desde a utilização das famosas estrelas amarelas até toques de recolher e trabalhos forçados.
Obviamente os habitantes dos guetos tinham uma liberdade maior do que os dos campos. Fora de suas horas de trabalho e antes do toque de recolher, eram livres para fazer o que bem entendessem – desde que não saíssem do gueto e nem desrespeitassem os regulamentos. Mas viviam sob o fantasma da deportação – a qualquer momento os nazistas poderiam decidir que tal e tal rua iriam para o campo de concentração. Os judeus, aliás, muitas vezes consideravam esse destino inevitável, o que fazia com que a vida se tornasse desesperadoramente estática – e resultava em uma alta taxa de suicídios.
É sobre essa falta de esperança que age Jakob Heym, o protagonista do livro Jakob, o mentiroso do escritor judeu alemão Jurek Becker – ele mesmo habitante do gueto de Łodz quando criança.
É a partir de um fato insólito que Jakob começa a espalhar a esperança: certa noite, voltando para casa, um soldado alemão o manda ir para o quartel militar e reportar-se por estar fora de casa depois do toque de recolher. Sem um relógio para confirmar suas suspeitas, Jakob vai. Acaba sendo dispensado pelo oficial de plantão, tudo não passara de uma piada de mal gosto. Dentro do quartel, no entanto, acaba acidentalmente escutando um rádio que narrava sobre os avanços russos no front – a batalha estava em Bezanika, a pouco mais de quinhentos quilômetros do gueto. Jakob fica ansioso por contar a notícia para alguém.
O escolhido acaba sendo o jovem Mischa. Ao narrar sua história, Jakob não recebe crédito – afinal, todos no gueto sabiam que qualquer judeu que entrasse no quartel militar não sairia com vida. A alma gentil de Jakob desespera-se por animar o companheiro de trabalho, e cria uma nova fonte, essa mais crível, para a novidade: ‘Eu tenho um rádio’, afirma.
A partir daí ambas as notícias se espalham pelo gueto e o avanço russo é recebido com tanto entusiasmo quanto a existência do rádio. A vida se transforma para todos, a esperança se espalha – logo serão libertos! O único descontente é Jakob, que passa a ser procurado diariamente, pois, como ele mesmo reflete em dado momento, ele deixa de ser um homem e passa a ser o dono de um rádio. O problema é que não existe um rádio, e Jakob se vê obrigado a mentir, não apenas para salvaguardar sua reputação, mas também para manter a esperança viva entre seus pares.
Desde o começo, porém, sabemos alguma coisa sobre o final da história, de forma vaga. Quem a narra é um judeu que habitava o gueto, que ouviu tudo da boca de Jakob, um pouco de outras pessoas e que, admite, inventou um pouco. E ele assume que o leitor sabe o destino da maioria dos judeus no Holocausto, sendo esse o destino da maioria dos judeus daquele gueto, por isso não se furta a citar o que aconteceu no fim, isso desde o começo. O modo como as coisas se deram, porém, é revelado lentamente, com parcimônia.
O tom do livro é quase o de uma narrativa oral, uma reminiscência carregada de melancolia. Isso não impede, porém, que um inevitável sorriso aflore, especialmente ao se ler sobre a afeição de Jakob pela menina Lena, ou sua amizade hostil – mas verdadeira – com o barbeiro Kowalski.
Escrito originalmente como roteiro para um filme, foi transformado em novela quando do malogro da produção cinematográfica. Mais tarde, porém, o livro, que é considerado a obra-prima de Becker, foi adaptado duas vezes – a primeira em 1974, pela companhia alemã oriental DEFA; a segunda em 1998, um remake da primeira com Robin Willians no papel principal.
Jakob, o mentiroso
tradução de José Marcos Mariano de Macedo
256 páginas
R$ 23,00
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