Reza a lenda que um belo dia Alan Moore estava em um bar quando uma pessoa na rua, um homem loiro de sobretudo e cigarro na boca, passou e durante os breves momentos que seus olhares se cruzaram, deu uma piscada. Essa história, mais do que um exemplo do misticismo de Alan Moore, pode ser lida como uma grande descoberta de um autor: conseguiu captar exatamente a essência da realidade em sua criação, a ponto de poder dizer que seu personagem é real. Pouco tempo depois, o mundo conhecia um mago malandro, fumante e de sobretudo nas páginas da revista do Monstro do Pântano. Criado para ser coadjuvante na história “gótico americano”, John Constantine chamou tanta atenção que pouco tempo depois ganhou seu próprio título: Hellblazer.
São essas primeiras histórias que temos a honra e o prazer de ver reeditadas por aqui novamente pela Panini. Jamie Delano e John Ridgway, ambos ingleses, ficaram responsáveis pelas páginas da revista. E foram muito bem. Tanto que é necessário corrigir uma injustiça em relação à criação do selo Vertigo da DC comics, porque se não fosse por Monstro do Pântano, Homem-Animal e Hellblazer nunca teríamos esse selo adulto de quadrinhos. Sandman, apesar de ter sido a primeira revista a estampar esse selo na capa, veio depois que esses três títulos pioneiros haviam deixado todos boquiabertos.
As histórias, como não podia deixar de ser, uma vez que Constantine é um mago, giram em torno do mundo sobrenatural. Demônios, feiticeiros, espíritos e o que mais a imaginação de Delano foi capaz de conceber estão ali. Mas nada daquele lugar comum de que ele seja um herói, ou que grandes poderes trazem grandes responsabilidades. Constantine quer apenas evitar que as pessoas façam bobagem enquanto querem se dar bem. Ele mesmo procura não se complicar enquanto vai tocando sua vida. Mas isso porque conheceu os limites da arte a que se dedica e sabe o quanto pode ser mortal. Sem lições de moral, no entanto.
Mas há algo mais nessas histórias e é isso que me faz reler. A exatidão em retratar sua época é incrível. Vemos uma Inglaterra devastada pela política neoliberal de Margaret Thatcher, jovens procurando ideologias onde se abrigar e que possam dar sentido a suas vidas. E principalmente, vemos o quanto somos propensos a tomar o caminho mais fácil para conquistar algo na vida, mesmo que isso deixe algumas pessoas feridas pelo caminho. Não se trata de um estudo sobre a natureza humana, nada disso, mas a grande qualidade a meu ver — mais do que ser um retrato fiel do que foram os deprimentes anos 80 —, é ser descaradamente livre de moralismos. Ora, se existe violência, por que ela deveria estar fora dos quadrinhos? Por que os personagens deveriam se deparar com alienígenas ou vilões que só querem ser notados? Não, são as pessoas comuns que Constantine encontra todos os dias e elas causam grandes problemas. Vemos traumas históricos, como a Guerra do Vietnam, serem tratados de modo inovador, embora nada superficial; vemos abuso de crianças (tema que só começou a ser tratado bem depois mais seriamente pela grande mídia), vemos a ideologia Yuppie tentando passar por cima de todos os valores humanos.
Depois dessas histórias, Hellblazer foi escrita por muitos outros. Espero que mais alguém compartilhe de meu entusiasmo ao ver essa edição nas bancas. Mal posso espera pelo volume seguinte e pela fase de Garth Ennis.
Sobre o autor: Marcelo Gabriel Delfino é sociólogo, leitor e curioso. Aprendeu a ler com quadrinhos e nunca mais parou de ler. Acredita que são mais do que mera distração, podendo contribuir realmente para entender a realidade e refletir.
Gostei da crítica! E acho que o selo é muito bem-vindo.