Se existe algum tipo de inveja que pudesse ser chamada de boa, com certeza é a que eu senti ao ler a nova edição de A Guerra das Salamandras (‘Valka s mloky’, no original), do escritor tcheco Karel Čapek, lançada pela editora Record. A minha inveja, no caso, se dirige ao tradutor da nova edição, Luis Carlos Cabral. Ele não só traduziu o livro do original tcheco, como o fez de modo especialmente louvável. Cabral usou um português bastante acessível, mas que permanece bastante transparente para quem conhece a edição original – é possível notar como a reescritura que ele fez casa com o texto tcheco de Čapek.
Meu encanto com essa edição, porém, não para por aí. As inúmeras notícias de jornal, os cartões de visitas e até mesmo as placas que aparecem durante o livro receberam um tratamento gráfico especial, sendo quase que fac-símiles (de originais não existentes, é verdade, mas aí que está a graça da coisa).
Só por isso eu já indicaria o livro. Mas esses argumentos talvez sejam mais poderosos para quem já o conhece através da edição da Brasiliense, que foi publicada há mais de vinte anos – traduzida do inglês e sem esse aparato visual todo.
Para os outros, porém, o melhor falar a respeito da obra em si.
Guerra das Salamandras é um clássico da ficção-científica ou, pelo menos, de algo bastante próximo disso. É um dos livros mais famosos do tcheco Karel Capek – contemporâneo de Kafka, criador da palavra robot (que designava, é verdade, coisas um pouco diferentes do que imaginamos hoje, culpa da reapropriação que Asimov fez do termo). É também um livro profético: serve como previsão dos diversos ‘ismos’ do século XX e, principalmente, de suas conseqüências mais terríveis.
O livro traz uma espécie de história paralela para o século XX, com um toque de fantástico: descobrem-se as salamandras da espécie Andreas scheuchzeri, anfíbios bastante inteligentes e dóceis, que começam a ser utilizados como força de trabalho. Com sua eficiência e baixo custo, logo tornam-se a peça chave de uma utopia – que, rapidamente, desemboca em uma distopia de proporções monumentais.
A Guerra das Salamandras divide-se em três livros e um apêndice. No primeiro livro aparece justamente a história de como as salamandras foram descobertas, pelo capitão Van Toch. Tomado de carinho pelas criaturinhas ele propõe sociedade a um milhonário tcheco, que logo vê uma oportunidade de lucro – em troca de ferramentas baratíssimas, os animaizinhos espontâneamente oferecem pérolas. Van Toch acaba por espalhá-las pelo mundo, e não tarda para que o mundo tome conhecimento da curiosa espécie.
Os cientistas, é claro, não tardam a discutir a natureza desses animais, e o apêndice fica aqui, entre o primeiro e o segundo livros, na forma de um tratado científico – aparentemente bastante rigoroso – sobre os meios de acasalamento das salamandras.
Com a morte de Van Toch, porém, seu sócio tem planos menos humanos e mais lucrativos para os bichos. Surge então o Sindicado das Salamandras, que é o centro do segundo livro. Mobilizando interesses econômicos o Sindicado espalha as salamandras pelo mundo e modifica, de modo célere, o curso da história humana. Continentes podem ser construídos e transportados com facilidade nunca antes sonhada. É claro que as salamandras são cada vez mais exploradas. Ao mesmo tempo, porém, criam cada vez mais consciência de si mesmas e logo rebelam-se contra seus mestres humanos, iniciando uma guerra.
E essa guerra – que dá nome ao livro todo – é o tema da terceira parte de A Guerra das Salamandras. Dotadas de um poderio que lhes foi oferecido pelos próprios seres humanos, as salamandras tornam-se algozes cruéis.
Uma espécie de sátira antecipatória sobre a Segunda Guerra Mundial, Čapek escreveu esse livro como uma forma de crítica aos rumos que a política européia tomava nos anos 1930. A obra, no entanto, continua atual – e a editora Record foi bastante feliz ao publicar essa nova edição.
A Guerra das Salamandras
de Karel Čapek
tradução de Luis Carlos Cabral
336 páginas
R$ 39,90
Saiba mais sobre essa e outras obras no site do Grupo Editorial Record
Gostei da resenha e do livro.
Duas perguntas:
– você fala de três livros, eles foram publicados em apenas um volume pela Ed. Record?
– você leu o original em tcheco?
=)
Muito obrigado!
Bem os três livros são, na verdade, divisões da obra em si. Acho que sempre foram publicados em só volume.
E eu li o original sim. 🙂