Imagine que você tem uma dúvida crucial que pode direcionar sua vida para dois lados e, eventualmente, um terceiro. Por mais que se diga que Leon Tolstói penetre na alma de suas personagens, O diabo, conto renegado pelo escritor e só publicado após sua morte, não é uma simples história sobre alma, mas sobre o limite entre a consciência e a loucura. Lançado em algumas coletâneas, e agora parte da coleção pocket 64 páginas da editora L&PM, temos a história de um homem em constante batalha consigo mesmo. Para analisar isso é preciso acompanhar o crescimento do texto do escritor russo que, por mais simples que pareça, contém informações que são necessárias desde o início. Podemos conhecer os personagens, mas suas motivações e anseios permanecem em uma camada um pouco mais implícita.

Evguêni nos é apresentado logo nas primeiras linhas com suas principais qualidades e com a história de seus antepassados. Tudo parece promissor para esse jovem bacharel de direito quando seu pai vem a falecer e ele tem de assumir os negócios da família – e, por consequência, todas as suas dívidas. Ele ajeita tudo como pode e fica de posse duma aldeia inteira, dedicando todo seu tempo a trabalhos braçais e administrativos para manter o padrão de vida de sua mãe e uma mesada para seu irmão. Todavia, o personagem acredita que para manter a sanidade e saúde corporal, ele precisa liberar seus fluidos, influenciando assim toda a sua vida futura.

Por acreditar que dormir com mulheres apenas puras e por simples necessidade fisiológica, Evguêni sabe que não está cometendo nenhum pecado. Sua consciência passa a atormentá-lo quando, ao casar-se com Liza, continua pensando em uma de suas aventuras de solteiro. Nesse ponto, Tolstói mostra como agentes do destino parecem pregar peças nos homens. Enquanto o protagonista não era casado, nenhuma imagem do passado aparecia para atormentá-lo, mas quando está realmente satisfeito e feliz, para não dizer quase realizado, o destino, ou Deus, resolve colocar certos obstáculos para testá-lo. Desde lembranças até fantasias, passando por intensos diálogos internos que ilustram o desespero em que se encontra. As conversas consigo mesmo parecem criar uma segunda pessoa dentro de si, que age ao contrário do que acredita e aprova seus atos a partir de uma distorção de fatos. Evguêni é seu próprio carrasco, seu advogado e seu juiz, misturados num conflito constante e agoniante. Ele nem mesmo chega a trair a mulher! Mas seus pensamentos e fantasias sim, ao ponto de mexerem com suas faculdades mentais e propondo soluções mirabolantes – dentre elas a de realmente consumir a traição e outra de mandar a catalisadora de seus problemas mental-conjugais para outra cidade.

O grande trunfo de O diabo é não se limitar entre os julgamentos divinos, tampouco as decisões psíquicas e conscientes. O personagem principal da novela perde os sentidos, deixando-se levar por algo muito maior – seja por seu desejo ou ação dum demônio -, o que podemos observar é que não importa o racional ou religioso, toda divagação vem do próprio personagem, de suas culpas e de suas decisões. Entre a psique e o espiritual, o narrador coloca em cheque a sanidade de seu personagem principal que passa a conversar consigo mesmo. Em meio a esses diálogos, podemos observar o quanto nossas atitudes e culpas influenciam nossos atos presentes. Evguêni tenta negar seu passado, mas isso o atormenta em visões pseudorrealistas. Não é sua mente apenas que tenta sossegar, seu espírito pede uma paz nessa tempestade de dúvidas.

Por mais que pareça a descrição de um livro piegas, devo ressaltar que o autor de Guerra e Paz sabe conduzir uma história por mais clichê que ela aparente ser. Os personagens não precisam ser muito explorados, cada qual é apresentado no limite para que a constante tormenta de Evguêni nos faça duvidar do caráter daqueles à sua volta e o seu próprio – mesmo que no começo toda sua descrição dissesse o contrário. É notável que, apesar do nome remeter a uma figura de credo religioso, há poucos elementos que realmente mostram tal espiritualidade do protagonista. Por exemplo, quando Liza adoece, não há um padre para rezar por ela – como muitos crentes fariam -, mas a primeira atitude é procurar um médico. O protagonista não tenta limpeza espiritual mesmo quando chega ao ápice de seus pensamentos infortúnios e passa a considerar Stepanida, a mulher com quem dormiu antes de conhecer Liza, o próprio demônio.

Apresentando todos os personagens sem rodeios, Tolstói nos presenteia com uma narrativa agridoce que não permite ao leitor impedir os atos do protagonista – por mais que o julguemos, seu destino está selado e só podemos sentar, ler e acreditar que nada disso nos afetará, pois não somos os donos de seu destino. Além de colocar em xeque, em seu desfecho magnífico, a saúde mental de seu protagonista e daqueles que não enxergam em si mesmos traços da loucura.